segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Em meio ao nada

Me despertei já no outro dia de manhã, afastei a cortina da janela do ônibus que seguia convicto seu caminho e me deparei com uma paisagem totalmente transformada. Todo e qualquer tipo de vegetação havia desaparecido dando lugar a kilometros e kilometros de areia. No quase infinito horizonte se distinguia os contornos de um trem de carga, transportando quem sabe o que, provavelmente cobre das minas chilenas ou ainda gás proveniente da Bolivia. Mais além, permanecia a opulenta Cordilheira dos Andes, que nos acompanhou até o último dos destinos. Meus companheiros ainda dormiam um sono cansado pela larga semana que tiveram em Santiago. Ajeitei-me na poltrona como pude e de novo fui acometido pela sensação de que pouco a pouco me perdia entre um espaço confuso entre tudo que ficava para trás e o desconhecido que ainda habitava o porvir, agora metaforizado no nada circundante do deserto. Ainda faltavam umas boas horas, das 26 totais que dura a viagem até San Pedro de Atacama desde a capital chilena.

Passamos a cidade costeira de Antofagasta em um só fôlego e, pouco adiante, entramos oficialmente no Deserto de Atacama. O céu de cor anil não possuía sequer rastro de nuvens, como costuma ser na maioria dos dias do ano por lá, e contrastava preciosamente com a cor da areia no chão. Logo começaram a aparecer os vulcões, alguns ainda ativos. Era isso; e era só!

Chegamos a San Pedro ao cair da noite e apenas no dia seguinte pudemos disfrutar desse povoado perdido no Atacama. Suas ruelas quase não comportam a grande quantidade de turistas que frequentam a cidade, chegando mesmo a ser mais numerosos que a própria população local. Nesse mesmo dia, após um passeio de bicicleta pelas ruínas locais - onde, diga-se de passagem a tribo dos Lickan Antay, habitantes do deserto na época pré-colombiana, resistiram por muito tempo à invasão bárbara dos espanhóis - visitamos o valle de la muerte e o valle de la luna. Neste último, cujo nome se dá ao fato de ele não constituir par com nenhuma outra paisagem terrestre, mas assemelhar-se com a superfície lunar, presenciamos o famoso pôr-do-sol por detrás da grande duna. De encher os olhos!

O terceiro dia na cidade foi destinado às lagoas altiplânicas, curiosos reservatório de águas superiores a 4000 metros de altitude e ao deserto de sal do Atacama, habitat dos desengonçados flamingos. No quarto e último dia fomos aos gêiseres, esse raro fenômeno em que a terra expele gases e água em ebulição de suas entranhas. Ao final deste passeio, fizemos uma breve parada em um povoado que contém apenas 10 habitantes. Mas o que mais me impressionou foi o vento cortante desse lugar, seguramente pertencente à classe dos ventos que enlouquecem e desorientam os habitantes que vivem por onde passam, pela eterna necessidade de aferrar-se à alma para evitar que também ela seja levada pelo inconstante sopro da terra.

No final desse dia, mesmo que cansados, tivemos de rumar a Peru, pois o tempo não dava trégua. Depois de uma hora até a cidade de Calama, onde famintos devoramos alguns pratos de comida perto do terminal, subimos no ônibus que nos levaria a Arica, última parada em território chileno. Ao desmontar-me na poltrona fiquei pensando no Deserto e tudo o que ele significava.. Desde que cheguei a San Pedro me perguntava qual poderia ser o sentido de todo aquele vazio, sem achar outra saída senão a desalentadora resposta de que não havia sentido algum. Ao final dos quatro dias, sem saber, havia encontrado uma resposta. Ora, o sentido é qualquer um, isto é, aquele que quisermos atribuir, ou melhor, que vamos desapercebidamente atribuindo enquanto percorremos algum lugar, nos relacionamos com alguém ou nos deparamos com uma situação nova, pois somente o nada pode ser preenchido com algum sentido. E foi então que eu me dei conta de que o desconhecido que me esperava pela frente poderia ser qualquer coisa, e mudaria de acordo com alguma combinação absurda entre as minhas escolhas e a das demais pessoas. 

Já estava sonhando, só me faltava dormir. Me rendi ao cansaço, pois só chegaríamos à fronteira dali a 12 horas..

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A jornada final




De maneira que se terminou o intercâmbio. Assim, sem muito aviso, apesar de que a data de regresso já estava marcada desde o meu primeiro dia em Santiago. Nem bem me dei conta e já estava em um ônibus Pullman rumando a San Pedro de Atacama, primeira parada do que viria a tornar-se uma grande jornada que só terminaria com a chegada, duas semanas depois, ao Brasil. Entretanto, longe de ser uma viagem qualquer, essa fantástica subida de mais de 4500 km pela América do Sul andina representava o fim de um ciclo de vida e inevitavelmente o início de outro. Era o cabo da história que depois de haver completo uma trepidosa circunferência no ar, voltava do ponto de onde partiu, para ver, rever e viver tudo novo de novo, com outros olhos, outras idéias, outros juízos, outros sentimentos. 

"Se despidieron y en el adiós ya estaba la bienvenida" (Benedetti).

 Muito do que foi minha vida naqueles 5 meses de erros e acertos pelos caminhos santiaguinos se despedia do presente para habitar eternamente a memória, e a saudade sem remédio incorporou-se como um fantasma cujo espectro sombreado é capaz de fazer uma companhia aprazível, ainda que inalcançável. Um rápido aceno desde o portal do ônibus, alguns abraços efusivos, um beijo de sabor tenaz e logo o alegre e caótico ruído das simultâneas mensagens de adeus foi substituído pelo inapelável ronco do motor. Perplexo com a irrefreável determinação do tempo em seguir seu curso, fui vencido pelo cansaço e caí sem saber em um conturbado sono, perdido no espaço infinito que existe entre as coisas que já foram e as que ainda nem são.

Nem bem desperto, nem bem dormido, sonhei. E no sonho me dei conta de que o tempo também passava para mim e que havia chegado a hora de novamente tramar alguns planos para o futuro, que deixou de ser longínquo, intangível e agora espreitava com suas infinitas possibilidades logo atrás da próxima curva. Mas como me certificar de que estava preparado? Como saber-me pronto e apto? O que fazer diante do novo velho mundo que tornava-se cada vez mais próximo e inevitável?

Foram com essas perguntas que embarquei nessa jornada final pelo Chile, Peru e Bolívia. Na rota traçada um deserto, uma montanha, um lago e uma cidade. Fogo, ar, água e terra. E é essa viagem de maravilhas naturais e culturais, de pessoas pelo caminho e de grandes aprendizados que relatarei aqui, nos próximos posts, de modo a compartilhar um pouco do que vi e vivi por estes lugares inacreditáveis de nosso planeta. Todos os comentários e relatos de experiências - semelhantes ou diversas - são bem vindos! Até lá..