sexta-feira, 14 de maio de 2010

You either die a hero.. A lei anti-imigração do Arizona e a crise da Grécia.

Vivemos, na definição do sociólogo espanhol Manuel Castells (ver também Universitat Oberta de Catalunya), em uma sociedade em rede, interdepente, globalizada, guiada por um sistema que o autor denomina de capitalismo informacional desregulado y competitivo. Em outras palavras, uma sociedade em que todos estamos direta ou indiretamente conectados e nossas relações se dão de acordo com uma lógica capitalista de mercados livres, abertos, cada dia mais desregulamentados e cada vez mais competitivos. Nesse sistema onde há uma "liberdade" de mercado, tudo se resume a decisões de diversos atores, que, para tomá-las devem e buscam adquirir informações.

Aprofundando-se ainda mais na visão de Castells, trata-se de um sistema que inclui e exclui ao mesmo tempo, e cujo critério definidor de quem está dentro ou fora dessa grande rede é - mais além do aceso a tecnologia e a bens e serviços em geral - a rentabilidade econômica. Em minha leitura particular, associo o conceito de rentabilidade econômica ao de produtividade marginal, isto é, o valor agregado à produção por cada unidade de medida adicionada do fator produtivo (PMg=dq/dx). Grosso modo, algo é viável -e portanto tem sua inclusão assegurada - se, e enquanto, rentável economicante. Isso leva a duas perguntas fundamentais. Qual a extensão e a abrangência desse algo, que deve mostrar sérias expectativas de rentabilidade para comprar seu direito de ser/estar de forma digna neste mundo? E para quem este algo deve ser rentável, é dizer, quem define sua inclusão ou exclusão?

Em termos simples, os segundos são os investidores, isto é, quem possui capital econômico para investir (e o fazem buscando a maior rentabilidade possível). Consequentemente, todos os demais são os que devem se mostrar rentáveis. Não escondo aqui uma metodologia de análise baseada na visão marxista (porque essa palavra pesa tanto?) de que aqueles que não possuem fatores de produção são forçados a vender seu trabalho para garantir meios de subsistência. É que atualmente, aquele que não possui fatores de produção pode ser empreendedor (essa palavra leve, cheia de ousadia e potenciais) e tentar, através de créditos, que nada mais são do que investimentos de capital, levar seu empreendimento ao sucesso.

No entanto, os recursos são escassos e o sistema competitivo. Logo, para conseguir o meu  desejado quinhão, seja no trabalho ou em um negócio próprio, não basta que eu me torne rentável, senão que eu me torne mais rentável que meu companheiro. Mais ainda, como o sistema é desregulamentado, (ou seja, não há fronteiras para o capital, podendo este ser investido em qualquer parte do mundo, ademais de flutuar de um lado a outro com extrema facilidade) não basta que eu me torne mais rentável que meu companheiro vizinho, da mesma cidade, do mesmo país, senão que eu me torne mais rentável que meu companheiro da Índia, por exemplo, que já cresce sabendo inglês e se "dispõe" a trabalhar por muito menos e com contratos muito mais precários do que eu poderia.

Mas se o capital pode ser investido na Índia, onde encontra menos legislações trabalhistas e ambientais e mais desemprego, isto é, mais gente buscando emprego, é de se esperar que o indiano que estiver disposto possa deixar Nova Délhi e ir buscar emprego na Europa ou nos Estados Unidos, onde lhe pagarão melhor, além de gozar de um sistema de seguridade social etc. O problema é que não é bem assim. Caso emblemático é o dos Estados Unidos, que exportam suas empresas ao norte do México, para que contratem mão-de-obra mais barata e não contribuam oficialmente para a taxa de emissão de CO2 do país, mas fecham suas fronteiras aos mexicanos que tentam ultrapassá-las em busca de melhores condições de vida. Mais ainda, quando a situação fica realmente complicada, como é a do Estado do Arizona, que está quebrado e mantém altos índices de desemprego, surgem leis como a SB1070, que permite a polícia  prender cidadãos apenas porque aparentam ser imigrantes ilegais. Estes, que ocupam postos de trabalhos que poucos americanos se dignificavam a ocupar, subitamente tornaram-se incômodos quando os outros tipos de emprego começaram a ficar mais escassos. Situação que me faz lembrar da cena (clique para ver a cena legendada) do Cavaleiro das Sombras em que Batman interroga o Coringa, que lhe diz: they need you right now, when they don't they'll cast you out, like a lepper. See, their morals, their code, it's all a bad joke, dropped at the first sign of trouble. They're only as good as the world allow them to be. I'll show you, when the chips are down, these civilized people, they'll eat each other. De fato, no Arizona, ao contrário das diversas manifestações ao redor do mundo e inclusive em outros estados norteamericanos, pessoas foram às ruas manifestar publicamente sua aprovação à lei anti-imigração, com placas de Mexicans, go home, No trespassing e de apoio ao Sheriff Joe Arpaio, famoso por ser linha-dura contra os ilegais presos neste território (veja o vídeo aqui).

Castells fala ainda de uma geografia diferencial da exclusão social, ou seja, diferentes territórios possuem diferentes graus de exclusão, e de uma geometria variavél da globalização, isto é, diferentes impactos dos movimentos de capital financeiro internacional que provocam constantes mudanças em torno da criação de espaços de prosperidade e de desintegração. Para ilustrar essa questão temos dois exemplos muito recentes: a crise do subprime americano em 2009 e a atual crise da Grécia. Ambas apontam para um fato mais que óbvio, a força do capital financeiro supera a capacidade de ação de qualquer governo. No primeiro caso, o Governo dos Estados Unidos se viu forçado a injetar dinheiro em sua economia para evitar a quebra generalizada dos bancos. Não o fez porque quis, senão porque não tinha outra opção. O pior é que agora, adverte o economista Paul Krugman, os banqueiros sabem que, detendo o poder que detêm, podem abusar à vontade na concessão de crédito, porque caso venham a falir o governo virá ao seu auxílio. No caso da Grécia, os dados maquiados pelo governo e, diga-se de passagem pela Goldman Sachs, instituição bancária norteamericana que lucrou horrores com a venda dos títulos gregos falsamente seguros, ao serem descobertos, resultou em uma fuga de capitais do país e o levou a liquidar suas dívidas e prejuizos.

O que mais me incomoda nessa história toda, porém, é que ela muitas vezes nos é transmitida como algo inerente, algo que é e não que simplesmente está, e portanto, poderia ser mudado. E mais, muitas vezes nos esquecemos que, não obstante embasado por toda uma teoria econômica técnica, esse sistema de capitalismo informacional desregulamentado e competitivo é fruto de uma escolha política, cultural, institucional, que remonta aos 10 pontos do Consenso de Washington e é dia após dia reiterada por diversas escolhas que fazemos nós mesmos, enquanto atores sociais que construímos a realidade na medida em que somos construídos por ela. Mas a escolha é então (e de novo) a palavra mágica, porque implica liberdade, porque oculta uma alternativa. Não me perguntem qual seria essa alternativa, tampouco sei. Sou só dúvidas e não respostas. Só não me deixem crer na profecia autorealizada do promotor Harvey Dent, outra vez no filme Batman: o cavalheiro das Sombras: You either die a hero, or you live long enough to see yourself become the villain.