sexta-feira, 28 de maio de 2010

Viagem



Depois de pouco mais de dois meses vivendo como intercambista em Santiago, acabei adquirindo uma certa rotina. Aos poucos fui adaptando-me às suas ruas, esquinas, feiras ao ar livre, universidades, bibliotecas, parques, praças e tantas outras localidades peculiares desta linda cidade. Tornei-me um frequentador assíduo do bairro Bellavista, tão boêmio quanto artístico, assim como de seus arredores repletos de cafés, pintores de rua, cineartes, gente falando em um sem fim de idiomas. Passei a estudar um pouco, desde a cultura e história chilena até algumas políticas públicas e ações do Governo. Converti-me em mais um personagem da Faculdad de Administración y Economia da USACH, facilmente surpreendido a qualquer hora do dia em suas salas, refeitórios ou jardins. Coloquei em funcionamento alguns projetos e sonhos,que já trazia comigo na bagagem. Outros se perderam no caminho ou se desfizeram pelo choque com a realidade aqui encontrada.

Entretanto, na medida em que o passar dos dias foi adquirindo constância, os compromissos foram pouco a pouco invadindo o ócio, preenchendo toda e cada fissura de tempo livre com tarefas cujo sentido estava previamente definido - modelado em seus supostos motivos, razões de ser e finalidades. Como um processo naturalmente ocidental, a ordem se sobrepôs ao caos e, ao mesmo tempo em que lhe ia conferindo uma regularidade - um ponto de localização bem definido na trajetória espaço e tempo - guiando as atitudes para um destino final, também lhe esgotava da mágica e fantástica propriedade que apenas o vazio poderia conferir-lhe: a capacidade de atribuir sentidos, de interpretar os fenômenos de uma maneira nova e absurda, de espantar-se diante do desconhecido.

Por isso, alegrei-me em estar de novo de viagem. Uma viagem dentro da viagem. Uma ruptura com a incessante e veloz mobilidade do cotidiano. Uma abertura ao novo, ao ainda não descoberto. Na quarta-feira dia 19 de maio saímos de Santiago, eu e mais dois companheiros, rumo ao sul do Chile e Argentina. Coletivamente, buscávamos as maravilhas da região dos lagos andinos, adornada com suas montanhas de picos eternamente nevados, vulcões extintos e alguns ainda em atividade, arquipélagos produzidos pela furiosa atividade tectônica de outrora e, claro, dos maiores e mais majestosos lagos da América Latina. Individualmente, cada quem levava secretamente sua inquietante motivação, que o impedia de manter-se fixo e seguro, ainda que limitado, na cidade de Santiago, e fazia com que se movesse em direção às aventuras e desventuras dessa jornada. Viajávamos enquadrados na modalidade menos enquadrante de todas (e também a mais acessível, dado o nosso orçamento de estudantes): a de Mochilão. Entre ônibus, carona e longas caminhadas, logramos chegar a Bariloche (Argentina), a aproximadamente 1500 km do ponto de partida.

Passamos pelas cidades de Puerto Montt, Ancud (na ilha de Chiloé), Puerto Varas, Osorno, Frutillar e Ensenada, no território chileno, e pelas charmosas Bariloche e Catedral, já em terras argentinas. De minha parte posso dizer que, enquanto me admirava com a exuberante paisagem, ia repensando as coisas que tinha feito até então. Senti como se a ruptura com o cotidiano me tivesse despertado de uma certa letargia, um estado de agir automático no qual preocupava-me apenas com miudezas práticas para a realização de tarefas previamente definidas, como lembrar de passar no banco, comprar a comida da semana, lavar a roupa, estudar para uma prova, ir a uma discoteca para dançar.. Senti como se o tempo, que em Santiago salta de hora em hora, tivesse adquirido uma velocidade muito mais prudente, comungando da pacata tranquilidade em que um chileno de Puerto Varas busca lenha no lombo de seu burro para acender sua chimenea. Aliás, o vulcão Osorno não apenas atribui a essa cidade sua incrível moldura por detrás do lago llanquihue, como também rege o tempo de seus cidadãos, que permanecem no mesmo estado de latência, cultivando seus produtos e alimentando seus animais com o solo fértil provido pela montanha, e sujeitos às mesmas intempéries climáticas que esse gigante adormecido.

O professor de História da UFMG, José Carlos Reis, em seu livro As identidades do Brasil vol. 1, afirma que a história é interpretada e reinterpretada por cada sujeito histórico de acordo com seu momento presente e o sentido que atribuímos a ela define nossa identidade, isto é, o que fomos, quem somos e quem queremos ser. Nesta viagem ao sul, portanto, o que vivi não foi somente o deleite de conhecer novas paisagens e conversar com pessoas diferentes. No encontro entre o tempo naturalmente alargado pelo ritmo dos lugares visitados e o distanciamento espacial, pude repensar e reinterpretar minha própria história, em uma nova combinação pós-caótica de todos as situações que me influenciaram até aqui. Hoje, já de volta a Santiago, sinto-me literalmente renovado, com novos sonhos, novos caminhos, disposto a novamente mergulhar na desenfreada cotidianeidade. Entretanto, tudo é, mais uma vez, diferente!

(...) He vivido tanto que un día
tendrán que olvidarme por fuerza,
borrándome de la pizarra:
mi corazón fue interminable.

Pero porque pido silencio
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrário:
sucede que voy a vivirme.

Sucede que soy y que sigo.

No será, pues, sino que adentro
de mi crecerán cereales,
primero los granos que rompen
la tierra para ver la luz,
pero la madre tierra es oscura:
y dentro de mi soy oscuro:
soy como un pozo en cuyas aguas
la noche deja sus estrellas
y sigue sola por el campo.

Se trata de que tanto he vivido
que quiero vivir otro tanto.

Nunca me sentí tan sonoro
nunca he tenido tantos besos.

Ahora, como siempre, es temprano.
Vuela la luz con sus abejas.

Déjenme solo con el día.
Pido permiso para nacer
                                                       Pido silencio - Pablo Neruda