segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O recado da montanha velha

Mais uma noite de viagem e chegaríamos a Arica, extremo norte do Chile. Mesmo cansado pelos sabores da jornada, despertei no meio da madrugada com um formigamento incomum no braço. Sono sonhado em ônibus pendura-se por um fio - e balança a cada curva da estrada. É leve, mas ao mesmo tempo irresistível. Não tem posição que o permita ou facilite, nem leitura ou pensamento que o cure. De modo que me vi em um estado de semi-consciência e aos poucos fui me dando conta de que estava em trânsito pelo zunido do vento, que cortava o silêncio dos sonos precários de dezenas de passageiros. Abri a cortina e pude admirar a lua quase cheia, que dava à paisagem do deserto um aspecto de beleza sombria. No canto da janela, o frio ganhava a batalha com o abafado calor do nosso fôlego, que se via aprisionado em pequenos cristais de gelo, tão frágeis a ponto de se desfazerem com o mais singelo toque. Desfiz tantos cristais quanto pude, até o vidro ficar tão empapado com o vapor em estado liquefeito, que a paisagem lá de fora tornou-se turva, como o mundo de quem chora. Era a primeira vez que sentia falta de casa e só então percebi que o peso do cansaço misturava-se com um sentimento muito conhecido, o peso da distância e do tempo em que se passa distante. Viver é aventurar-se rumo ao nada, é partir e arriscar-se no desconhecido, mas é também saber quando regressar e partilhar as experiências vividas junto aos seus. Surpreendido no meio da noite pela saudade, não pude fazer outra coisa senão aceitar sua solitária companhia, e esperar que o dia trouxesse novas alegrias. Durmi como pude até a manhã seguinte.


Despertei já perto de Arica, última parada em território chileno. Só então entendi porque havia passado toda a noite revirando-me em um truculento estado de latência, perdido entre o sono e a vigília, mas incapaz de escolher entre um ou outro. Estava prestes a deixar o Chile, país que havia sido minha casa nos últimos 4 meses. Ali havia vivido grandes aventuras e desventuras. Ali tinha aprontado das minhas e também aprendido muito. Só sob a luz do dia pude perceber e conviver com a verdade de que aquele país havia de ficar em mim pra sempre,  e do mesmo modo, parte de quem eu agora era permaneceria eternamente nas lindas ruas de Santiago. Chegamos ao terminal e o movimento dos passageiros me arrancou de meu devaneio nostálgico. Olhei para meus amigos e companheiros de viagem, ainda havia muito chão a ser percorrido!


Nem bem deram as sete horas da manhã e já estávamos em um taxi para cruzar à cidade de Tacna, já do lado peruano da fronteira. No caminho conversamos com um mineiro chileno, que vivia no Peru porque o custo de vida era mais barato por aquelas bandas, de modo que tinha de realizar todos os trâmites do passo fronteiriço a cada duas semanas, quando ia ou regressava do trabalho. Pouco antes da aduana, ainda pelo lado chileno, uma grande faixa de areia estava cercada com sinais de não ultrapasse. Ao ver nossa curiosidade, o taxista logo explicou: são áreas onde foram enterradas minas terrestres durante a guerra contra o Perú e ninguém sabe mais ao certo onde as bombas estão localizadas.


A passagem se deu sem maiores complicações e logo estávamos em outro ônibus, partindo de Tacna rumo a Cusco, parada obrigatória àqueles que vão a Machu Picchu. Mais algumas boas horas de viagem nos separava daquela cidade situada a 3360 metros acima do nível do mar. O trecho não me pareceu longo, chegamos à tarde e fomos direto para o hotel.



A cidade de Cusco é bem curiosa, pois está situada em um grande vale, de modo que é cercada por bonitas serras. Por detrás desses morros, se escondem algumas ruínas do povo Inca, tribo indígena que habitou boa parte do território da América Latina, passando por regiões desde o sul da Colombia e Equador, se extendendo por todo o Peru e a Bolívia até o norte do Chile e Argentina. Cusco é conhecida por ser a capital desse grande império pré-colombiano, e em quechua - idioma dos incas ainda falado por diversos peruanos - significa o umbigo do mundo.


Atualmente a cidade é frequentada pelos mais diversos tipos de turistas e oferece um sem fim de atrações diurnas e noturnas. O mais interessante ali é, sem dúvida, o encontro de culturas. De um lado, as reminiscências do grande império Inca, que podem ser notadas em algumas construções, nas ruínas, nos hábitos alimentares, mas também nos rostos, traços e no idioma dos habitantes locais, contrastam com as igrejas, praças, estátuas e monumentos da cultura espanhola, que chegou não com o objetivo de aprender, mas de doutrinar, catequizar e explorar. De outro lado, a cultura peruana, em si já marcada por esse sincretismo de origens - embora a colonização espanhola tenha se dado em um ambiente muito mais segregador do que a nossa colonização portuguesa - com as demais culturas de todo um planeta, encontro que gera efeitos interessantes, como um bistrot francês situado em uma rua na qual durante o dia são vendidos uma série de artefatos, cerâmicas, medalhas e artesanatos andinos. Parte desse último encontro cultural simboliza, ao fim e ao cabo, o choque e o dilema vivenciado por uma América Latina que busca e sofre pressões para se modernizar, entrando em uma ordem mundial globalizante praticamente inescapável, mas que luta por não perder suas raízes e identidades nesse processo.


Mas em que pese todas as facetas da globalização, também foi ela que possibilitou que meus amigos e eu conhecessemos um jovem estudante de antropologia norte-americano chamado Thimoty, mas conhecido por Tim. Com ele saímos rumo ao destino mais esperado: Machu Picchu. Partimos cedo, em uma microvan guiada perigosamente por uma estrada em curvas e à beira de um penhasco, pelas mãos de um motorista terrivelmente imprudente. Encima de tudo isso, o caminho percorrido apresentava uma grande variação de altitude, combinação que acabou por marear diversos passageiros e nos obrigou, para o desespero do condutor, a fazer paradas seguidas para que eles pudessem extirpar seus males à beira da estrada. Depois de algumas horas, tomamos um trem que partia de uma velha hidroelétrica, chegando já de noite à vila de Águas Calientes, situada ao pé da montanha que leva a Machu Picchu.

Comemos algo e fomos dormir, afinal, é cedo que se levanta para subir a trilha de Machu Picchu. Os mais dispostos saem por volta das 3 horas da madrugada. Nós estavamos a caminho as 3:30h. A trilha é basicamente uma infinidade de degraus: 1 hora e meia de subida ininterrupta, aproximadamente. Já em cima, fizemos um breve café-da-manhã enquanto esperavamos o parque se abrir.

Machu Picchu, segundo contam os antropólogos e historiadores, era uma cidade que desempenhava um papel especial no império Inca: a produção do conhecimento e dos saberes. Ali se reuniam lideres espirituais e intelectuais para desvendar os mistérios destes mundo e do outro. Por isso a cidade era tão protegida, se escondendo em meio às montanhas, pois era considerada um lugar sagrado. Um fato curioso é que os espanhóis nunca conseguiram chegar lá, nem sequer desconfiavam de sua existência. Entretanto, ao saber da invasão e da eminente queda do império, os Incas fugiram de Machu Picchu desmanchando todos os caminhos que levavam até lá, como forma de proteger seu santuário. Devido a isso a cidade é tão preservada, pois permaneceu intacta até sua descoberta acidental por um norte americano.


E juntamente com as pesadas pedras cuidadosamente montadas uma por sobre as outras, também permaneceram intactos a espiritualidade e o mistério daquele lugar, que uma vez serviu de fonte de sabedoria para todo um império. Ao entrar, é como se fossemos tomados pela consciência do ar sagrado de Machu Picchu, que em quechua significa Velha Montanha, e nossa atitude não é outra senão a de respeito e admiração de poder contemplar parte da história da humanidade. Meus olhos corriam atentos a cada detalhe e minha mente tentava imaginar como foi a vida daqueles que, como nós, passaram seus anos por sobre esta mesma terra, a indagar-se sobre as mesmas e incortonáveis questões. Todos estamos buscando uma razão para viver, um sentido a todo esse espetáculo do qual nos cabe apenas uma pequena parte, mas cujo valor é inestimável.


Depois de muito andar entre as antigas casas de Machu Picchu, nos sentamos lá em cima, em uma espécie de forte desde o qual se podia ver toda a cidade e as montanhas que a circundam. Só então pude parar e perceber que essa maravilha da humanidade encerra consigo um grande ensinamento. Os Incas realizaram feitos espetaculares capazes de resistir as mais duras intempéries da natureza e do próprio homem. Bastou um sonho compartilhado coletivamente e muito esforço. O Mundo é feito e explicado através de crenças compartilhadas por todos nós. Algumas estão sendo constantemente revisitadas, atualizadas e reconstruídas. Outras se amparam em pilares mais sólidos e tradicionais, constituindo maiores obstáculos à depuração. Mas todas, sem excessão, constituem nossa consciência cognitiva do mundo, parte insubstituível de nossa humanidade. Quando os Incas foram extintos pelas mãos dos espanhóis, parte do mundo se acabou naquele momento, de maneira irrecuperável, pois muitas de suas crenças se perderam para sempre. Todo e qualquer ser humano tem muito o que dizer e é só através do dialógo que podemos construir nossos sonhos que mudarão o mundo. No fim, todo extermínio é um extermínio de si mesmo. É silêncio. Eis o recado da montanha velha..

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Em meio ao nada

Me despertei já no outro dia de manhã, afastei a cortina da janela do ônibus que seguia convicto seu caminho e me deparei com uma paisagem totalmente transformada. Todo e qualquer tipo de vegetação havia desaparecido dando lugar a kilometros e kilometros de areia. No quase infinito horizonte se distinguia os contornos de um trem de carga, transportando quem sabe o que, provavelmente cobre das minas chilenas ou ainda gás proveniente da Bolivia. Mais além, permanecia a opulenta Cordilheira dos Andes, que nos acompanhou até o último dos destinos. Meus companheiros ainda dormiam um sono cansado pela larga semana que tiveram em Santiago. Ajeitei-me na poltrona como pude e de novo fui acometido pela sensação de que pouco a pouco me perdia entre um espaço confuso entre tudo que ficava para trás e o desconhecido que ainda habitava o porvir, agora metaforizado no nada circundante do deserto. Ainda faltavam umas boas horas, das 26 totais que dura a viagem até San Pedro de Atacama desde a capital chilena.

Passamos a cidade costeira de Antofagasta em um só fôlego e, pouco adiante, entramos oficialmente no Deserto de Atacama. O céu de cor anil não possuía sequer rastro de nuvens, como costuma ser na maioria dos dias do ano por lá, e contrastava preciosamente com a cor da areia no chão. Logo começaram a aparecer os vulcões, alguns ainda ativos. Era isso; e era só!

Chegamos a San Pedro ao cair da noite e apenas no dia seguinte pudemos disfrutar desse povoado perdido no Atacama. Suas ruelas quase não comportam a grande quantidade de turistas que frequentam a cidade, chegando mesmo a ser mais numerosos que a própria população local. Nesse mesmo dia, após um passeio de bicicleta pelas ruínas locais - onde, diga-se de passagem a tribo dos Lickan Antay, habitantes do deserto na época pré-colombiana, resistiram por muito tempo à invasão bárbara dos espanhóis - visitamos o valle de la muerte e o valle de la luna. Neste último, cujo nome se dá ao fato de ele não constituir par com nenhuma outra paisagem terrestre, mas assemelhar-se com a superfície lunar, presenciamos o famoso pôr-do-sol por detrás da grande duna. De encher os olhos!

O terceiro dia na cidade foi destinado às lagoas altiplânicas, curiosos reservatório de águas superiores a 4000 metros de altitude e ao deserto de sal do Atacama, habitat dos desengonçados flamingos. No quarto e último dia fomos aos gêiseres, esse raro fenômeno em que a terra expele gases e água em ebulição de suas entranhas. Ao final deste passeio, fizemos uma breve parada em um povoado que contém apenas 10 habitantes. Mas o que mais me impressionou foi o vento cortante desse lugar, seguramente pertencente à classe dos ventos que enlouquecem e desorientam os habitantes que vivem por onde passam, pela eterna necessidade de aferrar-se à alma para evitar que também ela seja levada pelo inconstante sopro da terra.

No final desse dia, mesmo que cansados, tivemos de rumar a Peru, pois o tempo não dava trégua. Depois de uma hora até a cidade de Calama, onde famintos devoramos alguns pratos de comida perto do terminal, subimos no ônibus que nos levaria a Arica, última parada em território chileno. Ao desmontar-me na poltrona fiquei pensando no Deserto e tudo o que ele significava.. Desde que cheguei a San Pedro me perguntava qual poderia ser o sentido de todo aquele vazio, sem achar outra saída senão a desalentadora resposta de que não havia sentido algum. Ao final dos quatro dias, sem saber, havia encontrado uma resposta. Ora, o sentido é qualquer um, isto é, aquele que quisermos atribuir, ou melhor, que vamos desapercebidamente atribuindo enquanto percorremos algum lugar, nos relacionamos com alguém ou nos deparamos com uma situação nova, pois somente o nada pode ser preenchido com algum sentido. E foi então que eu me dei conta de que o desconhecido que me esperava pela frente poderia ser qualquer coisa, e mudaria de acordo com alguma combinação absurda entre as minhas escolhas e a das demais pessoas. 

Já estava sonhando, só me faltava dormir. Me rendi ao cansaço, pois só chegaríamos à fronteira dali a 12 horas..

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A jornada final




De maneira que se terminou o intercâmbio. Assim, sem muito aviso, apesar de que a data de regresso já estava marcada desde o meu primeiro dia em Santiago. Nem bem me dei conta e já estava em um ônibus Pullman rumando a San Pedro de Atacama, primeira parada do que viria a tornar-se uma grande jornada que só terminaria com a chegada, duas semanas depois, ao Brasil. Entretanto, longe de ser uma viagem qualquer, essa fantástica subida de mais de 4500 km pela América do Sul andina representava o fim de um ciclo de vida e inevitavelmente o início de outro. Era o cabo da história que depois de haver completo uma trepidosa circunferência no ar, voltava do ponto de onde partiu, para ver, rever e viver tudo novo de novo, com outros olhos, outras idéias, outros juízos, outros sentimentos. 

"Se despidieron y en el adiós ya estaba la bienvenida" (Benedetti).

 Muito do que foi minha vida naqueles 5 meses de erros e acertos pelos caminhos santiaguinos se despedia do presente para habitar eternamente a memória, e a saudade sem remédio incorporou-se como um fantasma cujo espectro sombreado é capaz de fazer uma companhia aprazível, ainda que inalcançável. Um rápido aceno desde o portal do ônibus, alguns abraços efusivos, um beijo de sabor tenaz e logo o alegre e caótico ruído das simultâneas mensagens de adeus foi substituído pelo inapelável ronco do motor. Perplexo com a irrefreável determinação do tempo em seguir seu curso, fui vencido pelo cansaço e caí sem saber em um conturbado sono, perdido no espaço infinito que existe entre as coisas que já foram e as que ainda nem são.

Nem bem desperto, nem bem dormido, sonhei. E no sonho me dei conta de que o tempo também passava para mim e que havia chegado a hora de novamente tramar alguns planos para o futuro, que deixou de ser longínquo, intangível e agora espreitava com suas infinitas possibilidades logo atrás da próxima curva. Mas como me certificar de que estava preparado? Como saber-me pronto e apto? O que fazer diante do novo velho mundo que tornava-se cada vez mais próximo e inevitável?

Foram com essas perguntas que embarquei nessa jornada final pelo Chile, Peru e Bolívia. Na rota traçada um deserto, uma montanha, um lago e uma cidade. Fogo, ar, água e terra. E é essa viagem de maravilhas naturais e culturais, de pessoas pelo caminho e de grandes aprendizados que relatarei aqui, nos próximos posts, de modo a compartilhar um pouco do que vi e vivi por estes lugares inacreditáveis de nosso planeta. Todos os comentários e relatos de experiências - semelhantes ou diversas - são bem vindos! Até lá..

sexta-feira, 18 de junho de 2010

José Saramago

O escritor português, nobel de literatura, José Saramago faleceu nessa sexta-feira, aos 87 anos, em sua casa nas Ilhas Canárias. Autor de obras primas como Ensaio sobre a cegueira, O Envangelho segundo Jesus Cristo, As intermitências da Morte e, seu último e controverso romance, Caim, publicado em 2009, Saramago era reconhecidamente cético, pessimista e um eterno combatente do que ele considerava as grande injustiças do nosso tempo, entre elas os grandes poderes econômicos e a Igreja.

"Não sou pessimista, o mundo é que é péssimo", afirmou o autor certa vez em uma entrevista em São Paulo (2005). Saramago também era um crítico da democracia e seu status de inquestionável credibilidade atual, não obstante ser uma democracia "sequestrada, condicionada, amputada", cujo o poder do cidadão limita-se a um simples sim/não a este ou aquele governo, uma vez a cada período de tempo (ver vídeo).

"Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário", disse Saramago em 2008. Em seu vídeo para o programa Janela da Alma (versão em português; versão em espanhol) o autor comenta sobre a poderosa máquina que nos leva a nos comportar de forma acrítica, a sermos levados pelas cada vez mais mirabolantes e rasas fantasias da modernidade, a saciar nossos 'desejos' com mais e mais bens de consumo, supérfluos e descartáveis. Saramago fala de uma ditadura econômica, mais rasteira ainda que as ditaduras políticas e militares, porque atua de forma tácita e  através do nosso próprio 'consentimento'.

Hoje o mundo perdeu um de seus grandes combatentes críticos. Não é à toa que, desde esta fria madrugada, cai ininterruptamente uma chovizna melancólica aqui em Santiago. Saramago, entretanto, segue, imortalizado em suas idéias.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Olá,

      Estou apenas cadastrando o blog em um site que ajudará na sua divulgação na Web, assim poderemos obter debates mais amplos através deste espaço aberto!


BlogBlogs.Com.Br

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Eleições 2010: hora de se posicionar - Dilma Roussef (PT)

Então seguimos rumo a meados de Junho e a chegada do inverno nos denota que o 2010 já vai também pela sua metade. Ano este que, diga-se de passagem, é especialmente decisivo para o futuro do país devido às eleições presidenciais que tomarão lugar no dia 03 de Outubro. É hora do Brasil parar para pensar em sua trajetória até aqui, não só do Governo Lula, senão também de toda sua história, seus movimentos sociais e lutas pela cidadania (algumas vitoriosas e outras nem tanto). E a história, como já disse em posts anteriores, é diferente para cada sujeito, que a entende e vive de forma distinta. Por isso a democracia, isto é, a oportunidade de cada passoa contar sua história e poder ouvir as histórias que contam os demais. Em outras palavras - e mais além do simples conceito econômico que afirma que a democracia é a soma dos interesses individuais - é a oportunidade do debate entre as diferentes versões de uma mesma história construída e reconstruída cotidianamente, cujo resultado é a depuração de idéias e a definição de bases sólidas para a projeção de um futuro em comum. É hora, pois, de tomar uma decisão!

Mas decisões não existem sem o alimento vital da informação. O lado positivo é que vivemos em nada menos que a era informacional, na qual se pode adquirir informações vindas de diferentes fontes e a custos muito baixos e acessíveis. O lado negativo é que muitas vezes o fluxo informacional supera nossa capacidade de processamento, sem contar na enorme quantidade diária de lixos informativos que recebemos, tornando árdua a tarefa de separar o joio do trigo. Além disso, os incentivos para tomar a decisão que somos obrigados a tomar na ocasião do voto muitas vezes são a longo prazo, quando não inexistentes por completo, o que torna essa tarefa ainda mais difícil e desinteressante segundo um ponto de vista imediato. Entretanto, como cidadãos, aqui estamos e para isso estamos. E estamos porque acreditamos na mudança crescente pela via democrática da cidadania e da participação popular. É por isso que, recém lançadas as primeiras candidaturas oficiais, resolvi postar semanalmente nesse espaço um resumo e a minha impressão sobre cada uma delas. Devo alertar que isso, com a exceção de hoje, não afetará meus textos quinzenais, que continuarão versando sobre um sem fim de outras facetas desse mistério que podemos chamar vida.

Começarei então pela candidatura da presidenciável Dilma Roussef, lançada nesse dia 13 de junho na conferência realizada pelo PT em Brasília. Em seu discurso, Dilma parte de uma visão em que o Brasil mudou para melhorar com o governo Lula e aposta na continuidade de tal mudança. Sua principal plataforma é a de crescimento do país aliado à inclusão social da população, o que significa diminuir a desigualdade entre os diversos setores da população. Partindo de uma visão bastante moderna, Dilma aposta na integração entre Estado e setor produtivo e entre governo e sociedade para promover tal situação de crescimento e inclusão social. Além disso, menciona também a integração inter-estadual entre as diversas esferas de governo, de modo a diminuir as diferenças entre as regiões do Brasil.

Mais especificamente, Dilma delinea o caminho rumo ao crescimento pretendido segundo os avances que podem ser realizados em quatro áreas principais, educação, saúde, segurança e emprego. Quanto a educação, visa mormente a qualidade do ensino em sua totalidade, isto é, da creche à pós-graduação aliado à inclusão digital para formar uma sociedade do conhecimento. Para isso prevê a formação contínua dos professores do ensino fundamental e médio, bem como o pagamento de salários mais justos e condizentes com os labores destes profissionais. Avaliações dos alunos e das escolas terão a tarefa de dizer se a política está ou não dando resultados. Além disso, Dilma aposta na continuição da interiorização do ensino técnico, no uso de bolsas de estudos para apoiar os alunos (ampliação do PróUni) e na instalação de banda larga nas escolas.

Quanto à saúde, a candidata mencionou um salto de qualidade no SUS baseado em três pilares de eficiência: financiamento adequado e sustentável do sistema, valorização das práticas preventivas e organização dos vários níveis de atendimento - básico, ambulatórial e hospitalar - para garantir uma alta resolutividade.

Em termos de segurança pública a candidata foi vaga e mencionou apenas a luta contra o crime organizado, o roubo de cargas, o tráfico de armas e drogas, com destaque para o crack. Todos velhos clichês de nossas campanhas eleitorais, perpétuos problemas sociais produzidos e reproduzidos pelas duras condições de desigualdade existentes no Brasil, contra os quais até o momento nenhum político conseguiu obter sólidos avances sociais.

Por fim, sobre a questão do emprego Dilma aposta no fomento à investigação e à produção industrial no Brasil, além da continuidade das obras de infra-estrutura do PAC e de planejamento urbano, que se guiarão pela garantia de acesso uninversal ao serviços básicos. Também foram mencionados o desenvolvimento regional, a valorização crescente do PRESAL e a continuidade do Programa Minha Casa, Minha Vida para combater o déficit habitacional existente no país. Por último, foi mencionado o fomento à cultura como garantia da diversidade cultural. No plano internacional, a candidata reforçou a necessidade de acordos multilaterais, sobretudo com nossos vizinhos da América Latina e com países da África.

No geral, as palavras de Dilma refletiram a visão orgânica do Partido dos Trabalhadores e também o bom trabalho que vem sendo desenvolvido por Lula a frente do país nesses últimos oito anos. Trata-se da eleição de um caminho diferente, nem tão liberal a ponto de se ver atado às medidas que indica o FMI e que tornaram o país tão vulnerável a crises externas como nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, nem tão à esquerda a ponto de colocar todas as fichas nas mãos do Estado, solapando a liberdade e individualidade. O que vejo na plataforma do PT e de Dilma é um caminho feito por brasileiros e voltado para o Brasil, com nossas próprias e únicas características. É a capacidade de dizer sim e não ao mesmo tempo, sem radicalismos. É apostar no Estado como principal fomentador do crescimento e promotor da igualdade social, mas aceitar seus limites e buscar em parceiros (setor privado e terceiro setor) o capital humano, social e econômico necessário para mover as engrenagens do país rumo a um futuro coletivo. É mais que nada incluir, com a continuidade dos programas sociais com destaque ao Bolsa Família, também mencionado, todos os brasileiros nesse processo de crescimento e contrução do futuro.

Trata-se, portanto, de uma forte plataforma, sustentável do ponto de vista teórico e prático (com o que foi feito até agora pelo governo Lula), a cujas idéias eu me considero, a priori, bastante aberto. Há, finalmente, três pontos negativos. O primeiro é a omissão no discurso de Dilma, de um fortalecimento da cidadania pela via da participação popular nas políticas públicas. Esse é um tema cada vez mais crescente em todo o mundo, que busca empoderar o cidadão tornando-o ao mesmo tempo destinatário e co-autor das iniciativas do governo, agregando a estas legitimidade, eficiência e aproximação com os reais problemas sociais. É dizer que não queremos simplesmente outorgar um cheque em branco a nossos políticos uma vez a cada quatro anos, senão participar cotidianamente nos assuntos públicos que nos afetam e interessam. O segundo ponto é a superficialidade com que Dilma tratou o tema ambiental, também sumamente importante nos dias atuais. Por fim, o terceiro ponto, mais além do discurso, é a lamentável, ainda que imprescindível do ponto de vista do pragmatismo político, aliança do PT com alguns setores oligárquicos do PMDB, resultando em apoio a velhos conhecidos como José Sarney, no Maranhão, e Jader Barbário, no Pará, entre outros. Tais fatos nos despertam de qualquer tipo de ilusão democrática e nos fazem perceber que, por mais que avancemos como país, há ainda alguns interesses intocáveis em nosso vasto território tupiniquim.

Até a proxima!

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Viagem



Depois de pouco mais de dois meses vivendo como intercambista em Santiago, acabei adquirindo uma certa rotina. Aos poucos fui adaptando-me às suas ruas, esquinas, feiras ao ar livre, universidades, bibliotecas, parques, praças e tantas outras localidades peculiares desta linda cidade. Tornei-me um frequentador assíduo do bairro Bellavista, tão boêmio quanto artístico, assim como de seus arredores repletos de cafés, pintores de rua, cineartes, gente falando em um sem fim de idiomas. Passei a estudar um pouco, desde a cultura e história chilena até algumas políticas públicas e ações do Governo. Converti-me em mais um personagem da Faculdad de Administración y Economia da USACH, facilmente surpreendido a qualquer hora do dia em suas salas, refeitórios ou jardins. Coloquei em funcionamento alguns projetos e sonhos,que já trazia comigo na bagagem. Outros se perderam no caminho ou se desfizeram pelo choque com a realidade aqui encontrada.

Entretanto, na medida em que o passar dos dias foi adquirindo constância, os compromissos foram pouco a pouco invadindo o ócio, preenchendo toda e cada fissura de tempo livre com tarefas cujo sentido estava previamente definido - modelado em seus supostos motivos, razões de ser e finalidades. Como um processo naturalmente ocidental, a ordem se sobrepôs ao caos e, ao mesmo tempo em que lhe ia conferindo uma regularidade - um ponto de localização bem definido na trajetória espaço e tempo - guiando as atitudes para um destino final, também lhe esgotava da mágica e fantástica propriedade que apenas o vazio poderia conferir-lhe: a capacidade de atribuir sentidos, de interpretar os fenômenos de uma maneira nova e absurda, de espantar-se diante do desconhecido.

Por isso, alegrei-me em estar de novo de viagem. Uma viagem dentro da viagem. Uma ruptura com a incessante e veloz mobilidade do cotidiano. Uma abertura ao novo, ao ainda não descoberto. Na quarta-feira dia 19 de maio saímos de Santiago, eu e mais dois companheiros, rumo ao sul do Chile e Argentina. Coletivamente, buscávamos as maravilhas da região dos lagos andinos, adornada com suas montanhas de picos eternamente nevados, vulcões extintos e alguns ainda em atividade, arquipélagos produzidos pela furiosa atividade tectônica de outrora e, claro, dos maiores e mais majestosos lagos da América Latina. Individualmente, cada quem levava secretamente sua inquietante motivação, que o impedia de manter-se fixo e seguro, ainda que limitado, na cidade de Santiago, e fazia com que se movesse em direção às aventuras e desventuras dessa jornada. Viajávamos enquadrados na modalidade menos enquadrante de todas (e também a mais acessível, dado o nosso orçamento de estudantes): a de Mochilão. Entre ônibus, carona e longas caminhadas, logramos chegar a Bariloche (Argentina), a aproximadamente 1500 km do ponto de partida.

Passamos pelas cidades de Puerto Montt, Ancud (na ilha de Chiloé), Puerto Varas, Osorno, Frutillar e Ensenada, no território chileno, e pelas charmosas Bariloche e Catedral, já em terras argentinas. De minha parte posso dizer que, enquanto me admirava com a exuberante paisagem, ia repensando as coisas que tinha feito até então. Senti como se a ruptura com o cotidiano me tivesse despertado de uma certa letargia, um estado de agir automático no qual preocupava-me apenas com miudezas práticas para a realização de tarefas previamente definidas, como lembrar de passar no banco, comprar a comida da semana, lavar a roupa, estudar para uma prova, ir a uma discoteca para dançar.. Senti como se o tempo, que em Santiago salta de hora em hora, tivesse adquirido uma velocidade muito mais prudente, comungando da pacata tranquilidade em que um chileno de Puerto Varas busca lenha no lombo de seu burro para acender sua chimenea. Aliás, o vulcão Osorno não apenas atribui a essa cidade sua incrível moldura por detrás do lago llanquihue, como também rege o tempo de seus cidadãos, que permanecem no mesmo estado de latência, cultivando seus produtos e alimentando seus animais com o solo fértil provido pela montanha, e sujeitos às mesmas intempéries climáticas que esse gigante adormecido.

O professor de História da UFMG, José Carlos Reis, em seu livro As identidades do Brasil vol. 1, afirma que a história é interpretada e reinterpretada por cada sujeito histórico de acordo com seu momento presente e o sentido que atribuímos a ela define nossa identidade, isto é, o que fomos, quem somos e quem queremos ser. Nesta viagem ao sul, portanto, o que vivi não foi somente o deleite de conhecer novas paisagens e conversar com pessoas diferentes. No encontro entre o tempo naturalmente alargado pelo ritmo dos lugares visitados e o distanciamento espacial, pude repensar e reinterpretar minha própria história, em uma nova combinação pós-caótica de todos as situações que me influenciaram até aqui. Hoje, já de volta a Santiago, sinto-me literalmente renovado, com novos sonhos, novos caminhos, disposto a novamente mergulhar na desenfreada cotidianeidade. Entretanto, tudo é, mais uma vez, diferente!

(...) He vivido tanto que un día
tendrán que olvidarme por fuerza,
borrándome de la pizarra:
mi corazón fue interminable.

Pero porque pido silencio
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrário:
sucede que voy a vivirme.

Sucede que soy y que sigo.

No será, pues, sino que adentro
de mi crecerán cereales,
primero los granos que rompen
la tierra para ver la luz,
pero la madre tierra es oscura:
y dentro de mi soy oscuro:
soy como un pozo en cuyas aguas
la noche deja sus estrellas
y sigue sola por el campo.

Se trata de que tanto he vivido
que quiero vivir otro tanto.

Nunca me sentí tan sonoro
nunca he tenido tantos besos.

Ahora, como siempre, es temprano.
Vuela la luz con sus abejas.

Déjenme solo con el día.
Pido permiso para nacer
                                                       Pido silencio - Pablo Neruda

sexta-feira, 14 de maio de 2010

You either die a hero.. A lei anti-imigração do Arizona e a crise da Grécia.

Vivemos, na definição do sociólogo espanhol Manuel Castells (ver também Universitat Oberta de Catalunya), em uma sociedade em rede, interdepente, globalizada, guiada por um sistema que o autor denomina de capitalismo informacional desregulado y competitivo. Em outras palavras, uma sociedade em que todos estamos direta ou indiretamente conectados e nossas relações se dão de acordo com uma lógica capitalista de mercados livres, abertos, cada dia mais desregulamentados e cada vez mais competitivos. Nesse sistema onde há uma "liberdade" de mercado, tudo se resume a decisões de diversos atores, que, para tomá-las devem e buscam adquirir informações.

Aprofundando-se ainda mais na visão de Castells, trata-se de um sistema que inclui e exclui ao mesmo tempo, e cujo critério definidor de quem está dentro ou fora dessa grande rede é - mais além do aceso a tecnologia e a bens e serviços em geral - a rentabilidade econômica. Em minha leitura particular, associo o conceito de rentabilidade econômica ao de produtividade marginal, isto é, o valor agregado à produção por cada unidade de medida adicionada do fator produtivo (PMg=dq/dx). Grosso modo, algo é viável -e portanto tem sua inclusão assegurada - se, e enquanto, rentável economicante. Isso leva a duas perguntas fundamentais. Qual a extensão e a abrangência desse algo, que deve mostrar sérias expectativas de rentabilidade para comprar seu direito de ser/estar de forma digna neste mundo? E para quem este algo deve ser rentável, é dizer, quem define sua inclusão ou exclusão?

Em termos simples, os segundos são os investidores, isto é, quem possui capital econômico para investir (e o fazem buscando a maior rentabilidade possível). Consequentemente, todos os demais são os que devem se mostrar rentáveis. Não escondo aqui uma metodologia de análise baseada na visão marxista (porque essa palavra pesa tanto?) de que aqueles que não possuem fatores de produção são forçados a vender seu trabalho para garantir meios de subsistência. É que atualmente, aquele que não possui fatores de produção pode ser empreendedor (essa palavra leve, cheia de ousadia e potenciais) e tentar, através de créditos, que nada mais são do que investimentos de capital, levar seu empreendimento ao sucesso.

No entanto, os recursos são escassos e o sistema competitivo. Logo, para conseguir o meu  desejado quinhão, seja no trabalho ou em um negócio próprio, não basta que eu me torne rentável, senão que eu me torne mais rentável que meu companheiro. Mais ainda, como o sistema é desregulamentado, (ou seja, não há fronteiras para o capital, podendo este ser investido em qualquer parte do mundo, ademais de flutuar de um lado a outro com extrema facilidade) não basta que eu me torne mais rentável que meu companheiro vizinho, da mesma cidade, do mesmo país, senão que eu me torne mais rentável que meu companheiro da Índia, por exemplo, que já cresce sabendo inglês e se "dispõe" a trabalhar por muito menos e com contratos muito mais precários do que eu poderia.

Mas se o capital pode ser investido na Índia, onde encontra menos legislações trabalhistas e ambientais e mais desemprego, isto é, mais gente buscando emprego, é de se esperar que o indiano que estiver disposto possa deixar Nova Délhi e ir buscar emprego na Europa ou nos Estados Unidos, onde lhe pagarão melhor, além de gozar de um sistema de seguridade social etc. O problema é que não é bem assim. Caso emblemático é o dos Estados Unidos, que exportam suas empresas ao norte do México, para que contratem mão-de-obra mais barata e não contribuam oficialmente para a taxa de emissão de CO2 do país, mas fecham suas fronteiras aos mexicanos que tentam ultrapassá-las em busca de melhores condições de vida. Mais ainda, quando a situação fica realmente complicada, como é a do Estado do Arizona, que está quebrado e mantém altos índices de desemprego, surgem leis como a SB1070, que permite a polícia  prender cidadãos apenas porque aparentam ser imigrantes ilegais. Estes, que ocupam postos de trabalhos que poucos americanos se dignificavam a ocupar, subitamente tornaram-se incômodos quando os outros tipos de emprego começaram a ficar mais escassos. Situação que me faz lembrar da cena (clique para ver a cena legendada) do Cavaleiro das Sombras em que Batman interroga o Coringa, que lhe diz: they need you right now, when they don't they'll cast you out, like a lepper. See, their morals, their code, it's all a bad joke, dropped at the first sign of trouble. They're only as good as the world allow them to be. I'll show you, when the chips are down, these civilized people, they'll eat each other. De fato, no Arizona, ao contrário das diversas manifestações ao redor do mundo e inclusive em outros estados norteamericanos, pessoas foram às ruas manifestar publicamente sua aprovação à lei anti-imigração, com placas de Mexicans, go home, No trespassing e de apoio ao Sheriff Joe Arpaio, famoso por ser linha-dura contra os ilegais presos neste território (veja o vídeo aqui).

Castells fala ainda de uma geografia diferencial da exclusão social, ou seja, diferentes territórios possuem diferentes graus de exclusão, e de uma geometria variavél da globalização, isto é, diferentes impactos dos movimentos de capital financeiro internacional que provocam constantes mudanças em torno da criação de espaços de prosperidade e de desintegração. Para ilustrar essa questão temos dois exemplos muito recentes: a crise do subprime americano em 2009 e a atual crise da Grécia. Ambas apontam para um fato mais que óbvio, a força do capital financeiro supera a capacidade de ação de qualquer governo. No primeiro caso, o Governo dos Estados Unidos se viu forçado a injetar dinheiro em sua economia para evitar a quebra generalizada dos bancos. Não o fez porque quis, senão porque não tinha outra opção. O pior é que agora, adverte o economista Paul Krugman, os banqueiros sabem que, detendo o poder que detêm, podem abusar à vontade na concessão de crédito, porque caso venham a falir o governo virá ao seu auxílio. No caso da Grécia, os dados maquiados pelo governo e, diga-se de passagem pela Goldman Sachs, instituição bancária norteamericana que lucrou horrores com a venda dos títulos gregos falsamente seguros, ao serem descobertos, resultou em uma fuga de capitais do país e o levou a liquidar suas dívidas e prejuizos.

O que mais me incomoda nessa história toda, porém, é que ela muitas vezes nos é transmitida como algo inerente, algo que é e não que simplesmente está, e portanto, poderia ser mudado. E mais, muitas vezes nos esquecemos que, não obstante embasado por toda uma teoria econômica técnica, esse sistema de capitalismo informacional desregulamentado e competitivo é fruto de uma escolha política, cultural, institucional, que remonta aos 10 pontos do Consenso de Washington e é dia após dia reiterada por diversas escolhas que fazemos nós mesmos, enquanto atores sociais que construímos a realidade na medida em que somos construídos por ela. Mas a escolha é então (e de novo) a palavra mágica, porque implica liberdade, porque oculta uma alternativa. Não me perguntem qual seria essa alternativa, tampouco sei. Sou só dúvidas e não respostas. Só não me deixem crer na profecia autorealizada do promotor Harvey Dent, outra vez no filme Batman: o cavalheiro das Sombras: You either die a hero, or you live long enough to see yourself become the villain.

domingo, 2 de maio de 2010

A Usina Hidrelétrica de Belo Monte: um exemplo prático


É inegável que o tema do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável está estabelecido de vez como um dos grandes debates da Política regional e global. Isso porque trata-se de um problema cada dia mais urgente, que atinge a um número imenso de pessoas (nesse caso, poder-se-ia dizer que ele atinge a todas as pessoas do planeta) e que ainda não possui solução viável, dividindo opiniões de todos os stakeholders envolvidos. Estas diversas soluções propostas por atores interessados na questão referem-se necessariamente a quais ações devemos tomar ou deixar de tomar (não ações) para melhorar nossa vida enquanto individuos de uma mesma sociedade. Em outras palavras, o que está em jogo é a própria definição de que liberdades e limites (ou responsabilidades) devemos e podemos ter frente a atual fase de evolução da humanidade.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro Em Busca da Política (Jorge Zahar Ed., 2000), afirma: "a arte da política, se for democrática, é a arte de desmontar os limites à liberdade dos cidadãos; mas é também a arte de autolimitação: a de libertar os individuos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos" (os grifos são originais). Entretanto, essa definição de limites autoimpostos é um fator dependente dos interesses de cada ator envolvido. Tais interesses, por sua vez, variam de acordo com uma concepção específica da história e uma determinada projeção do futuro, isto é, os interesses são definidos por quem são os atores - e, portanto, por suas histórias pessoais e coletivas - e quem eles querem ser ou aonde querem chegar, suas ambições e desejos para um mesmo futuro compartilhado. Cada ator, portanto, vê a realidade desde o seu ponto de vista, linguagem muitas vezes inacessível para os demais atores.

Jogue todos esses elementos no caldeirão de um debate aberto na Ágora (espaço simultâneamente público e privado de discussões, imprescindível à democracia) e adicione o ingrediente cultural do individualismo existente nos dias de hoje e uma pitadinha de assimetria de poderes entre os diversos grupos, e teremos um elemento químico como a nitroglicerina, tão instável e cheio de tensões que qualquer mudança no ambiente pode causar uma grande explosão. O problema é que algumas mudanças no ambiente, já nos avisou a Ciência, ocorrerão inexoravelmente, como o aumento na temperatura em até dois graus e suas consequências.

Exemplos práticos desses debates são inúmeros, como a Conferência de Copenhague ocorrida em março de 2010 e a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra promovida pela Bolívia, em resposta à primeira, e ocorrida em abril do mesmo ano. Entretanto, o motivo que gerou esse post foi o debate sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, que depois de mais de 20 anos parece que agora encontrou uma solução. No dia 20 de abril, o TRF da primeira região suspendeu a liminar concedida pela Justiça do Pará que impedia a realização do leilão para a construção da Hidrelétrica. Tal leilão, portanto, deverá ser realizado até o final deste ano e as obras estão previstas para terminarem em 2019. O produto, a terceira maior hidrelétrica do mundo com capacidade de geração de 11 mil megawatts e um grande impacto ambiental.


Ora, é inegável que uma Usina desse porte causará danos ambientais na Floresta Amazônica. Com esse argumento, estão as diversas comunidades indígenas da região, as ONG's e movimentos sociais em defesa do meio ambiente e alguns norteamericanos de interesses duvidosos que defendem a internacionalização da área. Por outro lado, existe o argumento da demanda, o Brasil necessitará cada vez mais dessa energia (ou alguém aí está disposto a deixar de consumir o que consome atualmente?), cujas fontes alternativas não conseguem oferecer em quantidades suficientes, e os habitantes da região necessitam do emprego que irá gerar a Usina. Sobre isso escreve Delfim Neto, em sua coluna O oleiro de Altamira na revista Carta Capital.

O Brasil está entrando em uma fase de desenvolvimento nunca antes atingida em sua história. A reputação e a confiabilidade do país segue crescendo de maneira perceptível a nível internacional. Ainda somos famosos pelo futebol, mas aumenta o número de pessoas que nos conhecem pela nossa trajetória política, pela nossa cultura, pelos nossos programas sociais, pelas nossas decisões econômicas etc.. Lula recentemente foi eleito o líder mundial mais influente pela lista Times 100 da revista americana Times. É verdade que, sim, necessitamos dessa energia que produzirá a Usina de Belo Monte. Mas que a façamos respeitando os direitos dos indígenas da região (como realmente tem sido feito até então) e de forma a agredir minimamente o meio ambiente. Uma solução seria incluir legalmente a participação de uma consultoria ambiental nos dois consórcios que concorrerão no leilão da hidrelétrica.

Não tenho dúvidas, grande parte dos avanços realizados pelo Brasil nesses últimos anos é fruto da tradição democrática que aqui se estabeleceu no pós ditadura. Temos muito o que caminhar, mas somos exemplos para muitos países nesse sentido, sobretudo com a Constituição Federal de 1988 e algumas de nossas instituições políticas. E digo mais, grande parte dos créditos deve ser dada à gestão do governo Lula que se negou a seguir com uma governança guiada exclusivamente pelas teorias neoliberais (que mostraram novamente seu fracasso em 2008/2009) e buscou, junto com a população, uma alternativa que era a nossa cara, ao invés de simplesmente importar estratégias de outras localidades. É preciso acreditar em nossas soluções e discutir incessantemente todo e qualquer tema. É preciso participar democraticamente. É preciso entender que não existe o privado sem o público e vice-versa. Aplausos para as décadas de discussão em torno da contrução da hidrelétrica de Belo Monte e, tenhamos presente que essa discussão ainda não terminou. Fiquemos, pois, de olho!

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Tempos interessantes

O site do CPFL Cultura traz um projeto muito interessante para o ano de 2010. Trata-se do ciclo de palestras A Transformação do Indivíduo para a Construção da Sociedade Sustentável do Futuro, proposto por Hélio Mattar, diretor-presidente do Instituto Akatu - pelo consumo consciente. Tenho seguido as diversas palestras que de maneira geral estão muito boas - embora, na minha opinião, nenhuma tenha abordado o tema de forma direta e clara o suficiente, talvez por que ainda não saibamos como fazer o que devemos fazer diante dessa urgente situação ambiental. Em particular, destaque para a fala de Sérgio Besserman, em sua palestra sobre o consumidor e o indivíduo na era da transição. Sem perguntar se alguém se interessa pelo assunto, já vou logo recomendando o vídeo a todos, uma vez que o tema do desenvolvimento sustentável se faz cada vez mais presente e essencial na vida de cada um de nós.

Besserman, depois de uma breve exposição sobre os principais riscos que corremos enquanto humanidade frente às alterações climáticas do planeta, busca pensar em possíveis caminhos que poderão levar-nos em direção ao suposto desenvolvimento sustentável, conceito do qual ele mesmo adverte, pouco ou nada sabemos. Tais caminhos deveriam passar necessariamente pela tomada de consciência em esfera global desse problema e contar com um comprometimento de todos no sentido de agir para minimizá-lo, tanto a nível público, sobretudo no que tange aos Estados como agrupamento de pessoas em comunidade, quanto a nível individual.

E para piorar, em se tratando de destruição do ambiente do qual fazemos parte, não basta que a metade do globo terrestre pare de contaminar seus rios e seu ar, ou de devastar suas florestas etc. Isso não é suficiente, pois a dinâmica do próprio planeta não respeita as frágeis fronteiras embandeiradas dos países. O ar, os mares, os gases poluentes emitidos tanto pelas indústrias como pelo degelo das camadas polares, as temperaturas, todos eles são de todos e, se por acaso nos tocam a todos de diferentes maneiras, é inegável que não existirá nem mesmo um bioma terrestre que não terá sua dinâmica alterada pelo aquecimento global.

Outro agravante indiscutível é a concentração de riquezas. Ora, aproximadamente um terço do mundo é dono da maior parte dos bens e capitais existentes na terra. A população desses países ditos desenvolvidos é a que mais consome e, portanto, a que mais contribui para o agravamento da crise ambiental. Por outro lado, se olharmos para os dois terços restantes, veremos populações que não querem outra coisa senão finalmente exercer seu sagrado direito de participar da repartição do bolo de riquezas mundial e também ter a chance de consumir um bom padrão de vida. Consequentemente, há uma grande pressão para que exista ainda mais consumo e ainda mais poluição, sem que ninguém possa acusar tais populações de estarem erradas em suas demandas.

Isso quer dizer que o caminho para o chamado desenvolvimento sustentável passa necessariamente por uma adesão global a normas que irão diminuir o crescimento ou alterar radicalmente a dinâmica econômica dos países. E mais além do que o "simples" fato de que temos todos que aderir a tais normas, está a condição essencial, isto é, a conditio sine qua non de que todos devemos fazê-lo levando em conta nossas diferenças e buscando uma via equitativa. Essencial porque ética, porque justa, mas também porque única dentro do sistema democrático, no qual cada país tem sua autonomia e soberania.

Tal cooperação mútua em prol de um bem comum deveria ser, em tese, instantânea, já que a a busca pelos interesses individuais resulta no maior bem estar coletivo, segundo Adam Smith, já citado nesse mesmo blog. Ora, depende de que tese se está falando. Para manter-nos somente dentro da própria Economia, busquemos uma solução pela Teoria dos Jogos. Um país A perderia muito e a curto prazo se trocasse parte de sua produção pela decisão de não poluir o meio ambiente. Perderia mais ainda, se um país B não o fizesse e assim atraísse toda a produção e consumo para seu território, ainda que poluísse muito. Dessa forma, a curto prazo, ambos países racionalmente decidiriam seguir com seus padrões de produção e poluição, pois nenhum teria a menor garantia de uma suposta ação verde por parte do outro. Tal situação é, grosso modo, o que ocorre atualmente e a razão porque, reunidos os líderes mundiais para a Conferência Ambiental de Copenhagen, nada fizeram de concreto - ainda que não houvesse um que desconhecesse as consequências dessas ações a longo prazo.

Novamente as evidências apontam para a necessidade cada vez mais urgente de outro tipo de racionalidade, mais humana, menos egoística, do que essa que nos prega a Economia e que fundamenta a dinâmica de nossos mercados. Pensando nisso, não posso deixar de concordar com Besserman: seguramente viveremos tempos interessantes!

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Amor

Há quem diga que ele não passa de uma criação humana, inventado em sua forma romântica pelos trovadores da Idade Média e consagrado nas tragédias de Shakespeare. Há quem diga que ele é um simples produto de reações químicas em nosso corpo e por isso mesmo provam a impossibilidade de seu permanecer no tempo. Há quem diga que, acompanhando a tendência da pós modernidade, também ele se liquefez para adotar as múltiplas formas dos continentes efêmeros que se refazem cotidianamente. Há quem diga que é algo transcendente, etéreo, junção de corpo e alma e que não pode outra coisa senão crescer ao longo do tempo. Há quem diga que é pura carne, pura pele, pura música, pura dor, puro desejo, pura poesia, puro sentimento e há ainda quem afirme sua total incompatibilidade com qualquer tipo de pureza. Mas a verdade é que, em se tratando de Amor, cada um tem sua versão particular, soberana e incontestável, muitas vezes até mesmo pela própria experiência.

Desse sem fim de versões, algumas das que mais me encantam escutar são as produzidas pelos artistas. Aliás, pode-se perguntar: o que seria da arte sem o amor? Gabriel Garcia Marquez, por exemplo, o ilustrou de forma genial em suas diversas facetas. Fez com que todos nós, leitores, nos apaixonássemos perdidamente por Rebeca ao percebê-la através dos olhos refinados de Petro Crespi para logo vê-la fugir com o corpulento José Arcádio. Ou quando perseguímos Renata Remedios (Meme), acompanhados do simples Maurício Babilônia e de suas mariposas amarelas, para morrermos com ele na emboscada em que lhe preparou Fernanda, que o julgava indigno de sua filha, e nos calarmos para sempre com ela, condenada a viver num convento distante. E como sofremos com Aureliano Babilônia ao escutar os incontroláveis gritos de amor emitidos a qualquer hora e em qualquer lugar por Amaranta Úrsula e Gastón, até o dia em que não mais conseguimos nos deter e a possuímos ali mesmo no quarto, contando só com a mordaça do lençol para conter os mais profundos gemidos de sua alma e não despertar a atenção do marido no aposento ao lado. Isso para restringir-se apenas ao inesgotável Cem Anos de Solidão.

Julio Cortazar, em sua obra Rayuela, nos relata a evolução e a decadência do amor entre Maga e Oliveira. Ela, ignora por completo as grandes letras, mas possui uma naturalidade em sua coragem no agir cotidiano que embarcou com seu filho recém-nascido em Montevideo na terceira classe de um navio rumo a Paris, sem nenhum dinheiro no bolso. Já ele, de Buenos Aires, apesar de brilhante pensador, capaz de manter um debate durante horas no clube da serpente, perde-se facilmente em epifanias filosóficas que não levam a nenhum lugar e está sempre buscando algo que não sabe o que é. Ela "nada en el río, mientras él lo mira de lejos".

Outro exemplo é Pyle, personagem norteamericano do escritor inglês Graham Greene, que empreende uma dura viagem à mais inóspita região de um Vietnã em guerra, só para dizer ao jornalista Fowler que se apaixou perdidamente pela jovem Fuong, sua companheira, e fará de tudo para conquistá-la. O melhor é que, para empreender a conquista da mais bela dançarina de Hanoi, traz consigo a comprovação da herança que receberá do pai e alguns exames sanguíneos para mostrar que é realmente saudável a ponto de ter filhos. E quem poderia se esquecer do amor de Chicó e Rosinha, que tem de contar com as numerosas astúcias do amarelo João Grilo para poder escapar do coronelismo e clientelismo do sertão da Paraíba (Ver trechos do filme O Auto da Compadecida 1 e 2)

Há ainda o amor cantado, que no Brasil inspirou algumas das mais formidáveis expressões da cultura nacional. Distante, expulso pelas árduas condições naturais do sertão, Luiz Gonzaga o canta em Asa Branca. Noel Rosa o canta sob as condições sociais, raciais e econômicas do Rio de Janeiro. Caetano Veloso e Chico Buarque cantam suas versões próprias do amor que não deu certo. A Bossa Nova o canta em sua relação com a vida, seus mistérios e perigos. Cazuza canta seu amor exagerado, sempre conflituoso, ora romântico, ora puro sexo e desejo, "meio bossa nova e rock n' roll". Até mesmo os mineiros, com seu jeitinho calado de mais fazer do que dizerem que fizeram, soltam a voz em grande estilo quando o assunto é amor: Beto Guedes e seu sagrado Amor de Índio, Milton Nascimento e sua Travessia, 14 Bis em Linda Juventude, Vander Lee com Contra o Tempo e tantos outros.

Nos livros, nos filmes, nas canções, na ciência e sobretudo na vida cotidiana, o amor se infiltra e consolida-se como um tema indispensável para a vida! E em meio a tantas versões, se me permitem os ilustres, eu também gostaria de compartilhar em breves palavras minha visão particular, que reflete nada mais que o pouco que aprendi desse inarrável sentimento. Negação última da razão, amar é encontrar-se com o outro em toda sua humanidade. É percebê-lo como um universo, um emaranhado de sentimentos e desejos, muitas vezes contraditórios. Mas é também saber que esse encontro nunca pode ser unilateral e, portanto, é deixar-se amar, desnudar-se frente ao outro para que ele possa descobrir-te em toda sua plenitude. É aceitar-se e se expôr de maneira brutalmente franca. É perder as defesas, mas alargar os limites. É uma sensação infinita de ser-estar no mundo. É, por fim, a melhor solução e ao mesmo tempo aquela que ainda não sabemos como tomar!

Estou divangando! E um sentimento inquieto já me convida a deixar a contemplação e lançar-me de novo ao mundo, porque amar também é sinônimo de viver. Deixo então, para quem se atrever, as três perguntas que motivaram esse post e que ainda permanecem sem resposta. O que é o amor? Seria ele possível no mundo de hoje? E, algum dia, enquanto humanidade, soubemos amar? Com essas inquietudes ainda ocupando-me a cuca, me despeço. Até a próxima!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Outras razões para se viver

Esta semana, em uma aula de Dirección de Recursos Humanos na Universidad de Santiago de Chile - USACH, o professor, no calor da explicação da matéria, acabou se enveredando por caminhos que nada tinham que ver com o que estava tentando dizer à turma e pronunciou a seguinte frase: "É que vocês ainda são jovens e possuem o coração maior do que o cérebro, mas verão que com o passar dos anos o cérebro de vocês vai naturalmente crescer e ultrapassar em tamanho seus corações". Esta sentença não só é uma péssima resposta ao comentário demasiado apaixonado de um aluno - que o professor óbviamente julgou ser deveras inocente - mas também, e desafortunadamente, uma boa síntese do pensamento predominante no mundo de hoje.

Tal pensamento, pode-se dizer, é fruto de uma revolução da ciência que iniciou-se no século XVI, o Iluminismo. Nesse período consagrou-se a utilização da razão sobre toda e qualquer outra forma de conhecimento. É dizer que nenhum conhecimento alcançado por meios desconhecidos pela razão humana poderia ser considerado legítimo ou válido. Descartes, em sua obra Discurso sobre o método (1637), viu-se duvidando de tudo o que existia. Imagine um homem que, desde sua sala de leitura, abrigado confortavelmente do frio do inverno pelo calor das chamas crepitantes em sua lareira, mira o que lhe parece ser um cachorro branco em meio à neve distante que se acumula do lado de fora. Em um breve instante, porém, ao fixar os olhos, ele percebe que não se trata de um cachorro, mas sim de uma ovelha. Ora, se os olhos desse homem o fizeram confundir-se quanto à verdadeira existência do cachorro na neve, porque acreditar nas informações que nos enviam a cada momento nossos sentidos? E se a chama daquela lareira não estiver realmente crepitando e aquecendo o ambiente e o calor for somente um equívoco do tato? E se tudo não passar de um sonho? Assim, Descartes chegou à conclusão de que só podemos crer nas coisas que são indubtáveis, ou seja, não podem ser contrariadas pela razão - o ceticismo metodológico. E foi ao extremo desse pensamento para provar racionalmente a própria existência humana: pode-se duvidar de qualquer coisa existente, menos da própria dúvida, já que ela é realização do ato mesmo de duvidar. Cogito ergo sum.

Entretanto, ao avançar um pouco na leitura de Descartes descobrimos algo mais do que a simples idéia de que Matrix é um filme extremamente cartesiano. O filósofo continua sua descrição sobre o método racional de descobrimento da verdade afirmando que este conta de 4 etapas: verificar (duvidar), analisar, sintetizar e enumerar. Isso significa que esta razão que proclama o Iluminismo como a única legítima para revelar-nos o mundo é uma razão analítica, lógica, cartesiana e não sentimental ou emocional. É uma razão imanente e não transcendente.

Outro autor iluminista que ainda exerce grande influência no pensamento atual é Adam Smith. Em seu livro A riqueza das nações (1776), Smith defende a idéia de que cada indivíduo, visando apenas seu próprio bem-estar, pode provocar um bem-estar coletivo através do mercado e de sua suposta auto-regulação, que o autor ilustrou como se fosse uma mão invisível. Além disso, Smith cria um modelo de uma fábrica de alfinetes onde cada trabalhador exerce uma tarefa específica, em um sistema de divisão de trabalho que mais tarde influenciará a grande fábrica de Henry Ford e todo o fenômeno do fordismo. Tal modelo de Smith rompe com o então modo de trabalho baseado nas corporações, onde o conhecimento era passado de artesão para artesão de maneira que todos eram artífices de seus ofícios, para implantar um sistema mais eficiente em que apenas uma cabeça pensa e os demais somente repetem uma série de tarefas coordenadas. Ora, então podemos afirmar que essa razão iluminista é sim uma razão analítica, mas também individual e instrumental, na medida em que aparece a preocupação em produzir mais gastando-se cada vez menos.

Mas não era essa mesma razão analítica instrumental que estava por detrás da sentença proferida pelo professor de recursos humanos? - Não sejam tolos, pensem com seus cérebros e não com seus corações. Era o aviso que ele sutilmente passou a toda classe. Classe que, diga-se de passagem, estava ali reunida para aprender deste homem com gerenciar, da forma mais eficiente possível, os recursos humanos existentes em uma dada empresa ou em um governo. Por outro lado, é essa mesma razão que gera uma série de situações trágicas que presenciamos em nosso cotidiano. E é essa mesma razão que faz com que não nos movamos, ou melhor, muitas vezes nem sequer nos importemos frente a tais situações. Essa mesma razão que sustenta um sistema capitalista excessivamente competitivo e nunca cooperativo e que acaba por gerar pobreza, miséria, degradação humana e ambiental.

Em entrevista ao programa Sempre um Papo no dia 27 de junho de 2009, o teólogo Leonardo Boff fala sobre a necessidade de uma mudança de paradigma. Uma mudança que não significaria um rompimento total e completo com o paradigma anterior, mas que agregaria a essa razão analítico-instrumental uma razão emocional, fraterna, social, espiritual e ética. Uma razão mais inteligente, porque mais humana. Uma razão transcendente e não imanente. Vale a pena escutar as palavras desse sábio que é um dos grandes pensadores da Teologia da Libertação no Brasil e aprender com ele que precisamos de outras razões para viver. Fica o link da entrevista, como sugestão!

sábado, 27 de março de 2010

A sociedade como rede dinâmica e os novos rumos da Economia

Cada vez mais, tenho a impressão de que estamos todos interconectados de algum modo. Uma imagem fornecida pela sociologia moderna pode traduzir esse fato de uma maneira bastante clara. Imaginem cada indivíduo como um nó atado em uma rede formada por milhares de pequenos nós. Um ser humano evidentemente não tem relação direta com todos os demais, assim como um nó na rede está atado a um número limitado de nós. Entretanto, de relação em relação, acabamos por nos conectar de alguma maneira com todos os índivíduos que compõem essa vasta rede global. Em termos simples, foi o que demonstrou o turco Orkut Buyukkokten, criador da plataforma de relacionamentos que até hoje é a mais usada no Brasil. Em um certo momento, era possível acessar o perfil de praticamente qualquer pessoa e descobrir por quais contatos você estava ligada a ela. Uma ferramenta criativa e impressionante! Agora imagine que cada nó dessa rede esteja em constante movimento, em constante mudança. E que cada mudança implica no choque, destruição, alteração e formação de ligações com outros nós. E, para complicar, cada mudança implica novas mudanças e por aí em diante. A rede agora se parece um caos, dificilmente entendível. E realmente o é! Mas acerquemos bem nossa visão e poderemos retirar pelo menos três importantes informações dessa metáfora da sociedade como uma rede dinâmica.

A primeira é que não há indíviduos isolados, isto é, que não sofram a influência dos demais. Assim como não existe rede sem seu nós individuais. É o que afirma Norbert Elias em seu fantástico ensaio A sociedade dos indivíduos (Jorge Zahar Ed., 1994). É o que também afirmam outros autores em diversas áreas do conhecimento. Não há indivíduo sem sociedade, nem sociedade sem indivíduos. Não há o privado sem o público, nem o público sem o privado. Margareth Tatcher que me perdoe.

A segunda informação é que mesmo a mais ligeira mudança de apenas um nó é capaz de reconfigurar toda essa densa rede, sendo possível que até seu último elemento a sofra de algum modo. 

E a terceira, que decorre diretamente da segunda, é que apreender todas as mudanças que ocorrem e processá-las racionalmente é impossível. Todo e qualquer olhar sobre a rede é não mais que momentâneo, como uma foto de algo em movimento. É o retrato daquele instante e não pode servir para qualquer tipo de modelo ou previsão para o que ocorrerá nos instantes seguintes. Não há regras universais, não há expectativas homogêneas de comportamento. 

A metáfora se complica ainda mais se agregramos a dimensão psicosociológica e considerarmos que cada relação tem um significado distinto para cada pessoa, e que tal significado compõe a identidade social desse nó de uma forma peculiar e única, mas não chegaremos a tais extremos analíticos nesse post. A idéia central é que a realidade tal qual é não pode ser reduzida a modelos de comportamentos homogêneos e universais, como tentaram - e falharam - diversas teorias em todas as nossas ciências humanas. Entretanto, isso já foi descoberto por inúmeras dessas ciências e há quem diga que, recentemente, depois da crise econômica mundial de 2008/09, também pela que mais relutava em fazê-lo, a Economia. Sobre isso escreve David Brooks, jornalista e colaborador do New York Times em sua coluna dessa última quinta-feira dia 25 de março, The Return of History. Vale a pena ler! Trata-se de um texto interessante que aponta para o que eu creio ser um novo paradigma nas ciências humanas: ao invés da especialização do conhecimento, sua ampliação e depuração pelo diálogo entre suas diversas áreas. Em uma palavra, intersetorialidade. Mas esse é assunto para uma próxima postagem. Até lá!



terça-feira, 23 de março de 2010

O Blog





A idéia de que a vida é uma travessia me apareceu pela primeira vez enquanto lia o fabuloso Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa e foi reforçada pela leitura de Recados do Morro, do mesmo autor. A mensagem que Rosa, homem de imensa sabedoria e portanto, igualmente superticioso, nos passa em seus livros e na maneira como viveu é sobre o poder do caminho e a importância da caminhada para que se cumpra o destino, sobre o qual agem diversas forças além de nossas próprias vontades, muitas além até mesmo de nosso conhecimento. Mas o que cabe ao homem nessa existência fugaz que lhe escapa ao controle a cada tentativa demasiada humana de tomar conta da situação? Tudo. E nada. Ao homem cabe cumprir seu papel, cabe aprender, cabe observar, cabe mudar, cabe, enfim, caminhar com os próprios pés nessa longa e perigosa travessia!


Esse blog não é nada mais que um relato da travessia deste caminhante. Tão pessoal quanto permite ser a visão de um indivíduo que vive em sociedade. Tão coletivo quanto permite uma sociedade pós-moderna composta de indíviduos. Entretanto, não se trata de um relato qualquer, mas sim de impressões e percepções de olhos que querem ver para além da simples superfície, para além da ligeira e fugidia rotina moderna, que se desmancha para se refazer a cada dia. Olhos que pretendem colocar-se no lugar de quem é visto, sem abandonar a posição da qual mira, embora esta também esteja em constante xeque. Olhos que não exitam em buscar e recorrer a outros olhos. Olhos que não têm dono, não têm rumo. Olhos tão seus, quanto meus. E por isso esse blog é também um convite a outras impressões.


E é com esse convite para que ingressem comigo nesse mundo que se forma e nos espera diante de nossos próprios olhos, esse mundo de política, de música, de arte, de cultura, de pessoas e de lugares, de tudo que é humano e selvagem e até de tudo que é anti-humano, que me despeço nesse primeiro post. E é com os pés no chão e a cabeça nas nuvens que começamos essa travessia crítica. Façamos do passo o nosso meio de transporte. Adiante, o caminho!


Viver é mesmo muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo.
Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa...
O mais difícil não é ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo,
é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.

Guimarães Rosa