segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O recado da montanha velha

Mais uma noite de viagem e chegaríamos a Arica, extremo norte do Chile. Mesmo cansado pelos sabores da jornada, despertei no meio da madrugada com um formigamento incomum no braço. Sono sonhado em ônibus pendura-se por um fio - e balança a cada curva da estrada. É leve, mas ao mesmo tempo irresistível. Não tem posição que o permita ou facilite, nem leitura ou pensamento que o cure. De modo que me vi em um estado de semi-consciência e aos poucos fui me dando conta de que estava em trânsito pelo zunido do vento, que cortava o silêncio dos sonos precários de dezenas de passageiros. Abri a cortina e pude admirar a lua quase cheia, que dava à paisagem do deserto um aspecto de beleza sombria. No canto da janela, o frio ganhava a batalha com o abafado calor do nosso fôlego, que se via aprisionado em pequenos cristais de gelo, tão frágeis a ponto de se desfazerem com o mais singelo toque. Desfiz tantos cristais quanto pude, até o vidro ficar tão empapado com o vapor em estado liquefeito, que a paisagem lá de fora tornou-se turva, como o mundo de quem chora. Era a primeira vez que sentia falta de casa e só então percebi que o peso do cansaço misturava-se com um sentimento muito conhecido, o peso da distância e do tempo em que se passa distante. Viver é aventurar-se rumo ao nada, é partir e arriscar-se no desconhecido, mas é também saber quando regressar e partilhar as experiências vividas junto aos seus. Surpreendido no meio da noite pela saudade, não pude fazer outra coisa senão aceitar sua solitária companhia, e esperar que o dia trouxesse novas alegrias. Durmi como pude até a manhã seguinte.


Despertei já perto de Arica, última parada em território chileno. Só então entendi porque havia passado toda a noite revirando-me em um truculento estado de latência, perdido entre o sono e a vigília, mas incapaz de escolher entre um ou outro. Estava prestes a deixar o Chile, país que havia sido minha casa nos últimos 4 meses. Ali havia vivido grandes aventuras e desventuras. Ali tinha aprontado das minhas e também aprendido muito. Só sob a luz do dia pude perceber e conviver com a verdade de que aquele país havia de ficar em mim pra sempre,  e do mesmo modo, parte de quem eu agora era permaneceria eternamente nas lindas ruas de Santiago. Chegamos ao terminal e o movimento dos passageiros me arrancou de meu devaneio nostálgico. Olhei para meus amigos e companheiros de viagem, ainda havia muito chão a ser percorrido!


Nem bem deram as sete horas da manhã e já estávamos em um taxi para cruzar à cidade de Tacna, já do lado peruano da fronteira. No caminho conversamos com um mineiro chileno, que vivia no Peru porque o custo de vida era mais barato por aquelas bandas, de modo que tinha de realizar todos os trâmites do passo fronteiriço a cada duas semanas, quando ia ou regressava do trabalho. Pouco antes da aduana, ainda pelo lado chileno, uma grande faixa de areia estava cercada com sinais de não ultrapasse. Ao ver nossa curiosidade, o taxista logo explicou: são áreas onde foram enterradas minas terrestres durante a guerra contra o Perú e ninguém sabe mais ao certo onde as bombas estão localizadas.


A passagem se deu sem maiores complicações e logo estávamos em outro ônibus, partindo de Tacna rumo a Cusco, parada obrigatória àqueles que vão a Machu Picchu. Mais algumas boas horas de viagem nos separava daquela cidade situada a 3360 metros acima do nível do mar. O trecho não me pareceu longo, chegamos à tarde e fomos direto para o hotel.



A cidade de Cusco é bem curiosa, pois está situada em um grande vale, de modo que é cercada por bonitas serras. Por detrás desses morros, se escondem algumas ruínas do povo Inca, tribo indígena que habitou boa parte do território da América Latina, passando por regiões desde o sul da Colombia e Equador, se extendendo por todo o Peru e a Bolívia até o norte do Chile e Argentina. Cusco é conhecida por ser a capital desse grande império pré-colombiano, e em quechua - idioma dos incas ainda falado por diversos peruanos - significa o umbigo do mundo.


Atualmente a cidade é frequentada pelos mais diversos tipos de turistas e oferece um sem fim de atrações diurnas e noturnas. O mais interessante ali é, sem dúvida, o encontro de culturas. De um lado, as reminiscências do grande império Inca, que podem ser notadas em algumas construções, nas ruínas, nos hábitos alimentares, mas também nos rostos, traços e no idioma dos habitantes locais, contrastam com as igrejas, praças, estátuas e monumentos da cultura espanhola, que chegou não com o objetivo de aprender, mas de doutrinar, catequizar e explorar. De outro lado, a cultura peruana, em si já marcada por esse sincretismo de origens - embora a colonização espanhola tenha se dado em um ambiente muito mais segregador do que a nossa colonização portuguesa - com as demais culturas de todo um planeta, encontro que gera efeitos interessantes, como um bistrot francês situado em uma rua na qual durante o dia são vendidos uma série de artefatos, cerâmicas, medalhas e artesanatos andinos. Parte desse último encontro cultural simboliza, ao fim e ao cabo, o choque e o dilema vivenciado por uma América Latina que busca e sofre pressões para se modernizar, entrando em uma ordem mundial globalizante praticamente inescapável, mas que luta por não perder suas raízes e identidades nesse processo.


Mas em que pese todas as facetas da globalização, também foi ela que possibilitou que meus amigos e eu conhecessemos um jovem estudante de antropologia norte-americano chamado Thimoty, mas conhecido por Tim. Com ele saímos rumo ao destino mais esperado: Machu Picchu. Partimos cedo, em uma microvan guiada perigosamente por uma estrada em curvas e à beira de um penhasco, pelas mãos de um motorista terrivelmente imprudente. Encima de tudo isso, o caminho percorrido apresentava uma grande variação de altitude, combinação que acabou por marear diversos passageiros e nos obrigou, para o desespero do condutor, a fazer paradas seguidas para que eles pudessem extirpar seus males à beira da estrada. Depois de algumas horas, tomamos um trem que partia de uma velha hidroelétrica, chegando já de noite à vila de Águas Calientes, situada ao pé da montanha que leva a Machu Picchu.

Comemos algo e fomos dormir, afinal, é cedo que se levanta para subir a trilha de Machu Picchu. Os mais dispostos saem por volta das 3 horas da madrugada. Nós estavamos a caminho as 3:30h. A trilha é basicamente uma infinidade de degraus: 1 hora e meia de subida ininterrupta, aproximadamente. Já em cima, fizemos um breve café-da-manhã enquanto esperavamos o parque se abrir.

Machu Picchu, segundo contam os antropólogos e historiadores, era uma cidade que desempenhava um papel especial no império Inca: a produção do conhecimento e dos saberes. Ali se reuniam lideres espirituais e intelectuais para desvendar os mistérios destes mundo e do outro. Por isso a cidade era tão protegida, se escondendo em meio às montanhas, pois era considerada um lugar sagrado. Um fato curioso é que os espanhóis nunca conseguiram chegar lá, nem sequer desconfiavam de sua existência. Entretanto, ao saber da invasão e da eminente queda do império, os Incas fugiram de Machu Picchu desmanchando todos os caminhos que levavam até lá, como forma de proteger seu santuário. Devido a isso a cidade é tão preservada, pois permaneceu intacta até sua descoberta acidental por um norte americano.


E juntamente com as pesadas pedras cuidadosamente montadas uma por sobre as outras, também permaneceram intactos a espiritualidade e o mistério daquele lugar, que uma vez serviu de fonte de sabedoria para todo um império. Ao entrar, é como se fossemos tomados pela consciência do ar sagrado de Machu Picchu, que em quechua significa Velha Montanha, e nossa atitude não é outra senão a de respeito e admiração de poder contemplar parte da história da humanidade. Meus olhos corriam atentos a cada detalhe e minha mente tentava imaginar como foi a vida daqueles que, como nós, passaram seus anos por sobre esta mesma terra, a indagar-se sobre as mesmas e incortonáveis questões. Todos estamos buscando uma razão para viver, um sentido a todo esse espetáculo do qual nos cabe apenas uma pequena parte, mas cujo valor é inestimável.


Depois de muito andar entre as antigas casas de Machu Picchu, nos sentamos lá em cima, em uma espécie de forte desde o qual se podia ver toda a cidade e as montanhas que a circundam. Só então pude parar e perceber que essa maravilha da humanidade encerra consigo um grande ensinamento. Os Incas realizaram feitos espetaculares capazes de resistir as mais duras intempéries da natureza e do próprio homem. Bastou um sonho compartilhado coletivamente e muito esforço. O Mundo é feito e explicado através de crenças compartilhadas por todos nós. Algumas estão sendo constantemente revisitadas, atualizadas e reconstruídas. Outras se amparam em pilares mais sólidos e tradicionais, constituindo maiores obstáculos à depuração. Mas todas, sem excessão, constituem nossa consciência cognitiva do mundo, parte insubstituível de nossa humanidade. Quando os Incas foram extintos pelas mãos dos espanhóis, parte do mundo se acabou naquele momento, de maneira irrecuperável, pois muitas de suas crenças se perderam para sempre. Todo e qualquer ser humano tem muito o que dizer e é só através do dialógo que podemos construir nossos sonhos que mudarão o mundo. No fim, todo extermínio é um extermínio de si mesmo. É silêncio. Eis o recado da montanha velha..

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