quarta-feira, 11 de maio de 2011

A contradição humana em Kundera



"Quero que tudo saia, como som de Tim Maia
Sem grilos de mim, sem desespero
sem tédio, sem fim.."
                            (Caetano Veloso - Eclipse Oculto)


Já faz um tempo que li o romance de Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, mas foi só recentemente que me dei conta de algumas idéias que o livro me havia passado. Na verdade, não me é nada raro essa assimilação tardia dos fatos e conhecimentos em geral. É que nem o mundo, nem o tempo, são necessariamente lineares. Podemos percebê-los mesmo pelos mais insignificantes acontecimentos, mas que de algum modo logram marcar-nos diferentemente.

Assim que acabei, pelas circunstâncias da vida, me atentando para o que creio ser o ponto fundamental da obra do escritor Tcheco: colocamos expectativas demais nas coisas e nas pessoas. Queremos que tudo saia ao nosso gosto e, nesse impulso ao mesmo tempo racionalizante e egoístico, acabamos por chocar com o irresistível acaso. Em contrapartida, não fazê-lo nos é insustentável.

No romance, que tem por pano de fundo a invasão soviética à Tchecoslováquia, também conhecida como Primavera de Praga, dois personagens sentem a vida pela sua leveza: o médico-cirurgião Tomas e a artista Sabina; enquanto outros dois a percebem pelo peso de seus fardos e responsabilidades: a apaixonada Tereza e o ideológico professor Franz. O problema é que o relacionamento entre eles é marcado por uma série de "palavras incompreendidas", traços das distintas percepções que possuem do mundo.

Por um lado Tomas e Sabrina prezam sua liberdade como valor máximo, recusando-se a ater-se por mais tempo que o desejado a um compromisso, e, por que simplesmente não lhes é compreensível toda uma estrutura de regras sociais recalcadoras, acabam magoando quem a eles atribuem muitas expectativas. Entretanto, nem mesmo entre eles próprios, livres de quaisquer pressões ou responsabilidades, absolutely no strings attached, como dizem os norte americanos, conseguem manter um relacionamento totalmente leve.

Por outro lado, Tereza e Franz sentem profundamente o peso de seus compromissos. Ela vive com Tomas e apesar de relutar em contar-lhe que sabe de suas aventuras eróticas extra conjugais, sofre ao constatar as evidências de suas traições e não raro é atormentada por sonhos nos quais ela se vê cansada e constantemente ameaçada por seu homem e diversas mulheres nuas que o cercam. Tereza, em uma ocasião, chega até mesmo a trair Tomas com um desconhecido, mas sua consciência não a deixa em paz, nem para desfrutar do momento, nem depois do ocorrido.

Franz tampouco consegue se desvencilhar de seu casamento com Marie-Claire, apesar de seu desprezo por ela, e ainda que apaixonado por Sabina, só concebe fazer amor com ela fora de Genebra, uma armadilha inconsciente para disfarçar para si mesmo suas traições. Apenas depois de juntar muita coragem, e de descobrir que sua mulher também o traía, é que acaba o casamento. Mas Sabina, temendo o compromisso com seu amante, foge deixando-o só.

No fim do romance, apesar de todas as diferenças, apesar até mesmo do restritivo cenário político pelo qual passa a Tchecoslováquia durante a invasão russa, Tomas consegue se conciliar com Tereza e os dois passam a ter uma pacata e leve vida no campo. Ainda assim, o acaso os surpreende, mostrando que qualquer planejamento, mesmo a mais mínima das expectativas, podem ser subitamente interrompidos.

Vale a pena a leitura. E vale a pena o dilema apresentado pelo autor ainda nas primeiras páginas:


O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de rodos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes. 
Milan Kundera - A insustentável leveza do ser - pg. 11 

Nenhum comentário:

Postar um comentário