sexta-feira, 2 de abril de 2010

Outras razões para se viver

Esta semana, em uma aula de Dirección de Recursos Humanos na Universidad de Santiago de Chile - USACH, o professor, no calor da explicação da matéria, acabou se enveredando por caminhos que nada tinham que ver com o que estava tentando dizer à turma e pronunciou a seguinte frase: "É que vocês ainda são jovens e possuem o coração maior do que o cérebro, mas verão que com o passar dos anos o cérebro de vocês vai naturalmente crescer e ultrapassar em tamanho seus corações". Esta sentença não só é uma péssima resposta ao comentário demasiado apaixonado de um aluno - que o professor óbviamente julgou ser deveras inocente - mas também, e desafortunadamente, uma boa síntese do pensamento predominante no mundo de hoje.

Tal pensamento, pode-se dizer, é fruto de uma revolução da ciência que iniciou-se no século XVI, o Iluminismo. Nesse período consagrou-se a utilização da razão sobre toda e qualquer outra forma de conhecimento. É dizer que nenhum conhecimento alcançado por meios desconhecidos pela razão humana poderia ser considerado legítimo ou válido. Descartes, em sua obra Discurso sobre o método (1637), viu-se duvidando de tudo o que existia. Imagine um homem que, desde sua sala de leitura, abrigado confortavelmente do frio do inverno pelo calor das chamas crepitantes em sua lareira, mira o que lhe parece ser um cachorro branco em meio à neve distante que se acumula do lado de fora. Em um breve instante, porém, ao fixar os olhos, ele percebe que não se trata de um cachorro, mas sim de uma ovelha. Ora, se os olhos desse homem o fizeram confundir-se quanto à verdadeira existência do cachorro na neve, porque acreditar nas informações que nos enviam a cada momento nossos sentidos? E se a chama daquela lareira não estiver realmente crepitando e aquecendo o ambiente e o calor for somente um equívoco do tato? E se tudo não passar de um sonho? Assim, Descartes chegou à conclusão de que só podemos crer nas coisas que são indubtáveis, ou seja, não podem ser contrariadas pela razão - o ceticismo metodológico. E foi ao extremo desse pensamento para provar racionalmente a própria existência humana: pode-se duvidar de qualquer coisa existente, menos da própria dúvida, já que ela é realização do ato mesmo de duvidar. Cogito ergo sum.

Entretanto, ao avançar um pouco na leitura de Descartes descobrimos algo mais do que a simples idéia de que Matrix é um filme extremamente cartesiano. O filósofo continua sua descrição sobre o método racional de descobrimento da verdade afirmando que este conta de 4 etapas: verificar (duvidar), analisar, sintetizar e enumerar. Isso significa que esta razão que proclama o Iluminismo como a única legítima para revelar-nos o mundo é uma razão analítica, lógica, cartesiana e não sentimental ou emocional. É uma razão imanente e não transcendente.

Outro autor iluminista que ainda exerce grande influência no pensamento atual é Adam Smith. Em seu livro A riqueza das nações (1776), Smith defende a idéia de que cada indivíduo, visando apenas seu próprio bem-estar, pode provocar um bem-estar coletivo através do mercado e de sua suposta auto-regulação, que o autor ilustrou como se fosse uma mão invisível. Além disso, Smith cria um modelo de uma fábrica de alfinetes onde cada trabalhador exerce uma tarefa específica, em um sistema de divisão de trabalho que mais tarde influenciará a grande fábrica de Henry Ford e todo o fenômeno do fordismo. Tal modelo de Smith rompe com o então modo de trabalho baseado nas corporações, onde o conhecimento era passado de artesão para artesão de maneira que todos eram artífices de seus ofícios, para implantar um sistema mais eficiente em que apenas uma cabeça pensa e os demais somente repetem uma série de tarefas coordenadas. Ora, então podemos afirmar que essa razão iluminista é sim uma razão analítica, mas também individual e instrumental, na medida em que aparece a preocupação em produzir mais gastando-se cada vez menos.

Mas não era essa mesma razão analítica instrumental que estava por detrás da sentença proferida pelo professor de recursos humanos? - Não sejam tolos, pensem com seus cérebros e não com seus corações. Era o aviso que ele sutilmente passou a toda classe. Classe que, diga-se de passagem, estava ali reunida para aprender deste homem com gerenciar, da forma mais eficiente possível, os recursos humanos existentes em uma dada empresa ou em um governo. Por outro lado, é essa mesma razão que gera uma série de situações trágicas que presenciamos em nosso cotidiano. E é essa mesma razão que faz com que não nos movamos, ou melhor, muitas vezes nem sequer nos importemos frente a tais situações. Essa mesma razão que sustenta um sistema capitalista excessivamente competitivo e nunca cooperativo e que acaba por gerar pobreza, miséria, degradação humana e ambiental.

Em entrevista ao programa Sempre um Papo no dia 27 de junho de 2009, o teólogo Leonardo Boff fala sobre a necessidade de uma mudança de paradigma. Uma mudança que não significaria um rompimento total e completo com o paradigma anterior, mas que agregaria a essa razão analítico-instrumental uma razão emocional, fraterna, social, espiritual e ética. Uma razão mais inteligente, porque mais humana. Uma razão transcendente e não imanente. Vale a pena escutar as palavras desse sábio que é um dos grandes pensadores da Teologia da Libertação no Brasil e aprender com ele que precisamos de outras razões para viver. Fica o link da entrevista, como sugestão!

Um comentário:

  1. "É que vocês ainda são jovens e possuem o coração maior do que o cérebro, mas verão que com o passar dos anos o cérebro de vocês vai naturalmente crescer e ultrapassar em tamanho seus corações" Bom, ele, no calor da discussão, certamente deixou a razão linear da aula e botou o coração na boca. Abrass do Fainblat!

    ResponderExcluir